A cerimônia do Oscar e as falas de Biden contra Putin, na outra semana, causaram-me um duplo complexo semi mentiroso: de que sou incapaz de compreender o cinema e incapaz de compreender a guerra. O complexo sobre o cinema logo se desfez. Torcer para determinados filmes é a graça da coisa, mas é de uma infelicidade tremenda. Ergamos essa cabeça, já diria o Grupo Revelação. Afinal de contas, a “academia” é o reflexo cultural do recalque do seu império. Dito isso, o filme da bomba atômica ganhou. É como nos conta o meme: os Estados Unidos fabricam a bomba, soltam a bomba, fazem filme sobre a bomba e vencem o prêmio (que eles também fabricaram para se auto premiar) com o filme sobre a bomba. Quando fui ao Japão, quase dez anos atrás, visitei Hiroshima e Nagasaki. A memória do genocídio atômico (embora o assassinato em massa de civis japoneses não tenha sido interpretado e julgado como tal. Aliás, nunca julgado at all) jamais arrefeceu por lá. O silêncio do Parque Memorial da Paz de Hiroshima é ensurdecedor há 79 anos. Os Estados Unidos normalizaram a bomba e prometeram uma nova guerra, nada fria, contra a Rússia. Isso ao vivão, durante a cerimônia do Oscar. Já o bordão do Biden, senil como ele, “Fazer com que a América dirija o mundo mais uma vez” me lembra sempre o U2. No ano 2000, quando lançaram mais um disco, os meninos da Irlanda faziam questão de repetir para a imprensa: "we’re-applying for the job of best band in the world”. E vejam que curioso é a mistificação dos números: de 1989 até hoje, os Estados Unidos empreenderam 17 guerras, o exato número de álbuns lançados pelo U2 ao longo de sua belicosa carreira. Ou seja, está na hora do U2 parar de fazer discos.

Domingo passado teve as eleições na Rússia. E não havia muita saída. Votava-se em Putin ou em três fantoches de Putin. Mesmo assim, amigos russos formaram filas nas suas respectivas embaixadas na Europa para exercer o direito de, pelo menos, anular o voto. Muitos deles que viviam em Moscou e São Petersburgo, desde o início da guerra da Ucrânia, estão expatriados, espalhados pela Alemanha, Geórgia, Sérvia, França e Portugal. Alguns estavam em Israel e tiveram que fugir de lá também. Não sabem se um dia poderão voltar à Rússia. Eu digo que Putin morrerá e nós sobreviveremos. Eles duvidam que Putin seja humano. Confiam na hipótese de que ele seja uma substância terrível, praticamente indestrutível.

Então comecei a ler o livro de Maurizio Lazzarato chamado O que a guerra da Ucrânia tem a nos ensinar para cuidar deste outro complexo. Quanta coisa num livrinho. Diz o italiano que é preciso reintegrar ao capitalismo as guerras e as lutas de classes enquanto seus elementos estruturais para entendê-lo por inteiro e combatê-lo. De fato, a implosão da União Soviética e a certeza de Fukuyama acerca do fim da história foram acontecimentos que moldaram os livros escolares que eu estudei. Confesso que não ouvi falar em Marx e Engels nas aulas de história e geografia. E mesmo nos estertores do meu medíocre segundo grau, não me recordo. Estavam os dois pensadores no mesmo balaio de todo esse passado muito morto e muito distante daquela Copacabana dos anos 1990. Foi preciso entrar para a universidade e, posteriormente, ter amigos politicamente alertas para desvendar um bocado de coisa à minha volta.

Para Lazzarato, os conceitos de produção de subjetividade e de políticas do desejo, que tanto usamos, não podem se tornar comuns às nossas formas de vida sem antes empreendermos a “derrubada das expropriações originais”. Ou, como diria Marx: “expropriar os expropiadores”. É preciso retomar o materialismo histórico primeiro para então expropriar os senhores da guerra. Sim. Da mesma forma que é preciso, antes, ler as tragédias gregas e os textos de Freud para, depois, entregar-se ao Anti Édipo deleuziano. “Estamos teoricamente desarmados diante da guerra”, afirma o marxista. E arremata que a pacificação teórica é concomitante à pacificação política, empreendida pela contrarrevolução do neoliberalismo ao derrotar as forças contraculturais em meados dos anos 1970. Até Foucault foi pacificado. É preciso entender o pensamento revolucionário pré-68 para lidar com a guerra, ao que parece. Estou em São Paulo, e Manoela Miklos - que inclusive já deu um curso na PUC daqui sobre guerra e paz, América Latina e feminismo - me passou uma pequena biografia de apoio sobre todo esse falatório acima: Uma história da guerra, de John Keegan, para desmistificar o assunto, e o assombroso A guerra não tem nome de mulher, de Svetlana Aleksiévitch, para desmasculinizar o assunto.

Ainda não terminei o livro do Lazzarato. Agora, olhando para a multidão de prédios fálicos feios da capital paulista, penso que a virilidade militar e a pulsão masculina por trás da guerra é de outro ramo linguístico. É a língua dos outros. Os outros, aquele inferno sartreano.  “É preciso viver com os homens, é preciso não assassiná-los, é preciso ter mãos pálidas e anunciar o fim do mundo.” O que Drummond quis dizer com “mãos pálidas”? Menti e não falei sobre Paul B. Preciado no texto de hoje.

Compartilhar este post

Escrito por

Mariano Marovatto
(Rio de Janeiro, 1982)

Comentários