Uma vez, numa crônica, Mário de Andrade, pessoa das mais importantes do mundo, parafraseou uma frase de Confúcio: “se música e cortesia são bem compreendidas e estimadas, não há guerras”. Mário dizia que era uma maneira sutil e asiática de colocar abaixo todas as “pesadonas doutrinas europeias” que herdamos do homem branco, via Portugal. O que me lembra o que disse recentemente Eduardo Viveiros de Castro em entre- vista ao Talk show do Rafucko: “o que define os brancos é que eles nunca sabem quando parar de trabalhar, produzir, fabricar, parar de crescer, parar de destruir, até explodir a porra do planeta inteiro”. Mas, Mário mantinha essa visão exótica em relação às culturas asiáticas (adorava o Dao de jing e o gamelão indonésio), e mal sabia que – no décimo quarto ano do século XXI – a China parece ter assimilado muito melhor do que todas as culturas de origem europeia a capacidade de ilimitar-se dentro de um planeta tão limitado como a Terra.

Confúcio – visto nessa crônica de Mário como esse bom velhinho chinês e sábio –, foi na verdade o principal responsável pelo tamanho do monstro que é a China. Graças aos seus Analectos – a bíblia chinesa, sem eufemismos – a maior civili- zação asiática manteve sua orientação, sem muitos descarrilhos e com plenos interesses políticos, ao longo das eras para chegar onde está. O totalitarismo está nos cinco continentes. Se nosso modelo de macaqueação deixou de ser europeu para ser norte- americano, não mudará muito se for copiado do chinês.

Nossa civilização brasileira é jovem. Nelson Rodrigues, escritor incontornável que há pouco estava sendo lido num comercial da Claro estrelado por Neymar, já dizia para os jovens envelhecerem. A juventude seria burra para ele. Emburrecer a juventude é talvez a mais tradicional das políticas da história dos governos brasileiros. Jovens burros serão adultos manobráveis. Um exemplo muito claro, vindo do século passado: entre 1947 e 1964, o período que corresponde a uma “quarta república” brasileira, talvez tenha sido o momento de nossa história onde as políticas culturais e educacionais tenham surtido mais efeito. Claro que não era um mar de rosas, não foi antes e meu pessimismo afirma que não será depois. Mas uma enorme maturidade do pensamento, da música e da literatura brasileira (áreas que consigo refletir sobre) aconteceu nesse momento auge do Brasil moderno. E mais: nossos grandes heróis vivos e pensantes, nasceram nesse período no qual a educação, vista de hoje, parecia coisa dos sonhos. O problema foi o que sucedeu depois de 1964: além de todo o terror do período militar (oficializado em dezembro de 68 com o AI-5), o desmonte educacional foi o outro principal mal gerenciado pelos generais. E, ao longo das últimas décadas, seu efeito parece ter sido tão tenebroso quanto.

Os cinco continentes também produzem antídotos para seus totalitarismos. Se não fossem essas vacinas representadas por filosofias e condutas de gente brilhante, não estaríamos aqui, por exemplo, fazendo esse site e discutindo o desmonte da educação brasileira. Mas a política de emburrecimento é tão forte quanto uma bomba atômica e causa problemas por gera- ções até mesmo para os poderosos responsáveis pelo próprio desmonte. Há poucos dias a polícia militar do Rio de Janeiro, a instituição que pessoalmente acho a mais execrável e mais mal falada dos últimos 12 meses no país (creio que vence a polícia de São Paulo nesses quesitos), colocou na sua lista de futuras prisões preventivas um sujeito de nome eslavo chamado Mikhail Bakunin. Uma pena que foram avisados a tempo que Bakunin nunca pisou no Rio de Janeiro e morreu 138 anos atrás. Adoraria assistir (sentado) à perseguição de Misha pela cidade, ouvir o que o Beltrame, que infelizmente carrega o mesmo nome meu, teria a dizer sobre ele.

Mas emburreceram tanto a gente nesses últimos 50 anos que, se você não é graduado em história, jamais saberíamos que os anarquistas, no início do século XX, sofreram perseguições muito piores aqui no Brasil do que nossos presos preventivos de agora e (não posso medir, não tenho o direito, mas arrisco) do que os perseguidos pela ditadura.

Eis um resumo:

Na década de 1920, o governo do presidente Artur Bernardes (1922-1926), esse cara que ninguém lembra pelo rosto, vivenciou, entre outras coisas, o Tenentismo, a revolução gaúcha de 1923 e a Semana de Arte Moderna (Artur sabia bem quem era Mário de Andrade). Assim ele é lembrado. Mas ele poderia ser lembrado de outro jeito: por exemplo, pela colônia penal de Clevelândia, próxima ao Oiapoque, fronteira com a Guiana Francesa (imagina leitor, fazemos fronteira com a Guiana Francesa!). Colônia penal já é uma denominação tenebrosa e kafkiana. As condições de Clevelândia, porém, a assemelhava muito mais com um campo de concentração. Artur Bernardes talvez tenha sido o presidente que mais reprimiu revoltas trabalhistas na nossa história. Só que além de trabalhadores revoltados e devidamente reprimidos, presos e/ou mortos, havia uma caça mais ostensiva em relação aos anarquistas brasileiros. Não caberia aqui um estudo mais completo sobre a história do anarquismo no Brasil. Caberia, mas as linhas são curtas e meu conhecimento sobre o assunto é fraco. Segundo Carlo Romani, autor de belo artigo sobre Clevelândia disponível na internet, não havia outro tipo de presos políticos, de outra corrente libertária, senão a anarquista na tal colônia penal. A ideia do presidente Bernardes de confinar anarquistas na chamada “Sibéria brasileira” surgiu justamente depois de uma enxurrada de pedidos de habeas corpus que chegavam após as sucessivas prisões dos revoltosos. Enviá-los para o lugar mais distante do centro nevrálgico da jovem república brasileira seria uma forma eficaz de calar juristas, jornalistas e outras classes menos poderosas e numerosas daquele Brasil de apenas 30 milhões de pessoas ainda não conectadas às redes sociais pela internet. E assim foi feito “sem nenhum amparo legal e muitas vezes sem a existência sequer de processos correntes na justiça”. Prática um tanto comum até os dias de hoje. Sobre as condições dos presos em Clevelândia, o texto de Romani revela que:

Dos 946 presos lá internados entre 1924 e 1927, 491 morreram, ou seja, mais da metade. Boa parte dos sobreviventes que retornaram ao Rio e a São Paulo, de onde foram em sua maioria retirados, permaneceu com traumas e sequelas para sempre. A malária, o impaludismo e outras doenças adquiridas naquelas paragens distantes, fizeram-lhes perpetuar o sofrimento.

A história dos repressores entre os próprios repressores é tão fragmentada e diluída que menos de 100 anos depois, concursados da PM desconhecem não só a existência histórica de Mikhail Bakunin, mas também os fundamentos dos anarquistas, grandes inimigos dos militares brasileiros de outrora. O emburrecimento agenciado pelas forças totalitárias transformou ao longo das décadas a palavra “anarquia” que chegou até nós como sinônimo de bagunça e desordem, sendo que etimolo- gicamente ela significa “ausência de coerção” e não “ausência de ordem”.

Triste, na realidade, constatar que escrevemos textos agora que assimilam regimes totalitários falidos aos acontecimentos da nossa semana. Não é a guerra que mata, mas sim a falência da inteligência. Falência essa em prol de hegemonia política, do petróleo, dos minérios, das religiões e outras coisas saídas da Idade do Bronze que se perpetuam até hoje (com exceção, claro, do petróleo, obsessão mais recente).

A guerra que existe é a guerra contra a inteligência. O fato é que ela vem se mostrando, desde que nos entendemos enquanto seres que vivem em comunidade, tão ineficaz quanto a guerra às drogas ao longo da história. Mas isso é outro assunto (que é o mesmo). O que nos difere do resto de tudo que nós vemos nesse planetinha em ebulição e no universo imenso lá fora é essa tal inteligência. Só nos mantemos e manteremos vivos por conta dela. Daí sim podemos pensar em música e cortesia.

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Escrito por

Mariano Marovatto
(Rio de Janeiro, 1982)

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