Carnaval

Tem um par de anos que descobri que o carnaval carioca não tem muito que ver com isso que muita gente acha que tem. O meu carnaval – que não é só meu, mas também de uma massaroca deliciante de milhares de pessoas – não é o carnaval da Rede Globo, da Beija-Flor, dos camarotes de cerveja e dos sambas-enredo esdrúxulos. Nem dos blocos do Leblon e adja- cências, com rapazes muito fortes sem camisa e mocinhas de precários adereços carnavalescos tresandando pujança. O carnaval que falo é o estalo, o estopim que serve à realização daquilo que Wilhelm Reich entendeu como satisfação da necessidade biológica do homem, da ativação da plenitude de suas faculdades, do desejo, do não encarceramento moral que gera os verdadeiros impulsos sádicos e violentos de toda a espécie. Mesmo que seja por um devir, mesmo que seja por poucos dias. O carnaval é o combustível saudável para atra- vessar um ano. E se estou citando um pensador que tomou tudo o que pode de Marx e Freud para enlouquecer no seu próprio pensamento é porque me posiciono e coloco os outros exemplos que citei num mesmo curral (est)ético-político, em oposição a esse trio libertário.
Pois então: passei um mês no Japão (e meus amigos estão cansados desse assunto lá no Facebook) provando diariamente o avesso de tudo o que existe no Brasil. Poucos dias antes de explodir a folia aqui, eu estava em Tóquio debaixo de 5 graus, cercado de japoneses mui elegantemente vestidos e mui silenciosos – uma multidão nas ruas, plenamente coordenada e com um único objetivo comum durante seus trajetos individuais: respeitar o espaço do próximo. A ordem em conjunto pressupõe uma homogeneidade, concluí. Daí posso dizer que pela quan- tidade de japoneses caminhando, em sua vasta maioria com trajes pretos especialmente desenhados para o frio, é difícil destacar as individualidades de cada pedestre naquele movi- mento de milhares de pernas. É preciso parar e deter-se num transeunte e sacar suas peculiaridades. Nas ruas, no metrô, nos trens a ordem homogênea é maior do que a personalidade de um indivíduo na terra do sol nascente.
Dois dias depois – ou uma semana, agora não lembro bem – eu estava devidamente fantasiado e caminhando, em ritmo de marchinha, pelos blocos do Centro do Rio de Janeiro. Numa esquina ou outra me dava conta desse contraste absurdo entre os dois lugares opostos no globo. O calor era de 35 graus. Di- ferentemente de Tóquio, onde cada pedestre na multidão tem um destino pessoal e intransferível, nos blocos todos seguem um destino comum: acompanhar o som da bateria, não importa como e quão longe ela for. Aqui a individualidade de cada fantasia salta aos olhos. Cada dia, cada fantasia dá as normas da personalidade do folião. A fantasia é a base. Construir a fantasia antes de sair de casa é determinante. Penso que cada um se entende do jeito que lhe for mais proveitoso em relação às vestes carnavalescas. Há gente que se fantasia em grupo. Há gente que cria grandes estruturas e se compromete levá-las nos ombros até o fim do dia. Eu penso que as fantasias dos blocos devem se basear em dois princípios: cores e aerodinâmica. Mas com conteúdo pré-determinado. Conteúdo esse que, bem como a persona/personalidade da fantasia, vai mudando de acordo com o trajeto, com o álcool, com os psicotrópicos, com o calor, com os beijos, com os abraços, com o sol e com o suor.
Outra coisa: não há perder-se no bloco. Há destacar-se. No sentido que melhor couber na cabeça do leitor. É assim: você começa com amigos, eles se distanciam, você fica admirando pessoas que talvez conheça, passam alguns minutos, encontra outros amigos, de repente os primeiros amigos se juntam a esse segundo grupo, a vida vale a pena. Todos somem. Você encontra uma outra única pessoa também a procura dos mesmos amigos. O bloco para numa praça. O bloco para debaixo do vão do MAM. Absolutamente todos se encontram. O mundo é um só. Congra- çamento. Os vários personagens começam a pular cada um a seu modo. Se houver necessidade de subir no mobiliário urbano, suba. Destaque-se, junte um séquito, crie uma coreografia, incite os quadris alheios. Se preferir sente-se no meio-fio e observe o arco dos personagens. Como estavam horas atrás, nessa caminhada tão longa e como estão agora. Que adereços foram deixados para trás, que traços foram incorporados. Verifique verbalmente, ou não, se eles amam tudo isso da mesma forma que você está amando.
Há duas semelhanças grandes, porém, entre a multidão monocromática japonesa e o arco-íris prazenteiro carnavalesco dos cariocas na sua essência em fúria: 1) a não necessidade de se usar automóveis e; 2) a destituição da ansiedade pessoal e coletiva. Há, é óbvio, uma extrema conexão entre as duas seme- lhanças, mas me atenho ao segundo ponto. Parece que os relógios deixaram de funcionar logo após o despertador acio- nado pela manhã que levanta o folião e o leva até o bloco. Muitos relógios foram roubados ao longo do bloco, é verdade, é fato. E isso não acaba com o carnaval de ninguém. Faz parte da multidão daqui. Da nossa nudez diante do mundo, da nossa selvageria diante do mundo. Do trato bruto com o outro. Mas é preciso aproveitar antes que a ansiedade retorne na quinta-feira. Descobri num Starbucks em Sendagaya, Tóquio, enquanto esperava o início de uma tarde igualmente prazenteira, mas dentro do Teatro Nacional Nô – um tanto mais monocórdica do que as tardes com as marchinhas lamartinescas – de onde vem a nossa ansiedade e a nossa selvageria. Havia um quadro com um imenso mapa-mundi exibindo o coffee belt, as zonas de pro- dução de café, do planeta: exatamente entre os trópicos de câncer e capricórnio. Nesse um terço de planeta Terra deitam o Brasil, a América do Sul e um pedaço da América Central e do México, a África Central, a Índia, a Indonésia, um pedaço da Oceania, um tantinho da Península Ibérica e outro tantinho da Península Arábica. Todos nós – nós e eles – somos semelhantes nas cores, na intensidade das vivências, nos afetos, na miséria, na destruição, na sanguinolência, no amor. O mundo, descobri ali, deveria ser dividido em três e não entre norte e sul, ocidente e oriente. Porque descobri ali também que o Japão é o ocidente do ocidente. É tudo o que a Europa sonha todas as noites com a cabeça no travesseiro. Nós somos outra coisa. Tão bom e tão ruim quanto. De maneiras distintas. Muito distintas. Retornando ao assunto da ansiedade, talvez também exista uma semelhança com o terreno fértil para o plantio do café e nosso modus operandi sobre esse terreno. Talvez não.
Uma vez estava no trem de Osaka pra Kyoto observando os dedos dos passageiros. Não faço isso nunca, mas me dei conta de que todos os japoneses têm dedos lindíssimos: longos e de unhas retilíneas, tanto homens quanto mulheres. Porém, do meu lado sentou um par de mãos com dedos curtos de unhas roídas. Achei estranhíssimo e me detive sobre o japonês. Sua perna esquerda pulava, ansiosa. Num determinado momento ele sacou um pacotinho de mixed nuts da pasta e um latão de Sapporo. As pes- soas não costumam comer nos trens paradores por lá, pois se parecem muito com os metrôs, onde as pessoas realmente não comem (já nos trens-bala come-se bastante). Ele dava goles da cerveja intercalando com pinçadas nervosas de unhas roídas no pacotinho dos salgadinhos. Mastigava, engolia. Mastigava, engo- lia. O conteúdo do pacotinho acabou e ele enrolou aquele resíduo plástico da forma menos japonesa possível, jogou dentro da valise, colocou o latão no parapeito da janela e puxou um livro em alemão sobre a história da Alemanha. Deteve-se durante 20 minutos, à 8 centímetros de distância dos olhos, em apenas duas páginas do livro. Um mapa e um texto explicativo sobre a Repú- blica de Weimar. Senti a angústia irradiando daquilo tudo. Abri um sorriso imenso e ele nem percebeu. Queria abraçá-lo e dizer que entendia o que estava se passando: ele tinha a doencinha daqueles nascidos entre os trópicos de câncer e capricórnio. Era um semelhante. E assim como muitos de nós, ele parecia ler coi- sas que poderiam levar o pensamento a lugares erradíssimos. Eu queria levá-lo ao carnaval do Rio. Queria que transasse uma lisergia, que subisse no Carrocama do Opavivará, que trocasse uma ideia com o João, que tomasse banho de purpurina do Julio, que descesse até o chão com a Bruna e com a Renata, que beijasse o Daniel e a Zoé, que ouvisse a voz doce da Mari no meio daquele rocambole de pessoas brilhantes, que provasse da cerveja horrível que somos obrigados a tomar nesses dias. Mas já era a Estação de Kyoto e eu tinha que saltar. Ele permaneceu na República de Weimar. Talvez para sempre.
Tenho repetido repetidas vezes que foram duas viagens que fiz nesses primeiros meses de 2015: pro Japão e pro carnaval. Achava até ontem que o jet lag do carnaval estava sen- do muito mais difícil de contornar do que o jet lag do Japão. O Domingos diz que quando você viaja o corpo chega antes, a alma vem depois. No carnaval acontece o contrário: a alma chega antes e o corpo fica lá. Percebo agora que não sei exatamente qual corpo meu encontrou que alma minha e em que momento esses pares estão vivendo juntos. Talvez, oxalá, eu viva o ano de 2015 no desvio entre o finito e o infinito, que, conforme disse Einstein, é um desvio tendencioso para o vermelho. Minha cor predileta sempre foi o azul. O que diria Reich sobre o azul? O sangue que corre nas nossas veias é vermelho como a bola no meio da bandeira do Japão. Nada será como antes. Oxalá.