Em um livro sobre colapsologia, seu autor francês afirma que o “homem moderno” morrerá não pela mão da pós-modernidade, mas, antes, pelo fim dos recursos energéticos que ele mesmo inventou para ser moderno. Talvez o “homem moderno” tenha sido o único projeto de vida senciente em bilhões de anos de planeta que ousou menosprezar a finitude da existência e das coisas. Inventou a bomba atômica, modificou a genética e continua prospectando petróleo em locais cada vez mais inacessíveis e tecnologicamente impossíveis de obter sua extração. Todos os outros seres suspeitaram, temeram (e ainda temem) pelo fim do mundo. Toda civilização escreveu sobre o apocalipse. Nós, inclusive. Habitantes do realismo capitalista canibal, superamos em quantidade literária todos os textos cristãos sobre o final dos tempos. Em qualidade também. Temos todas as metáforas, todas as estatísticas e provas cabais do colapso definitivo que a humanidade jamais teve a seu dispor. E tá claro: falta muito pouco, galera. Como concordaria Mark Fisher, os dinossauros morreram, mas o homem moderno parece que não vai morrer. Mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim daqueles que executam  o genocídio palestino e provocaram a ruína do Rio Grande do Sul.

O Apocalipse apócrifo de Tomé, escrito no século V, afirma que o mundo vai acabar da mesma forma que começou: em sete dias. Na segunda-feira (não a próxima, mas talvez sim) “uma nuvem de sangue subirá do norte e a seguirão grandes trovoadas e fortes relâmpagos que cobrirão o céu inteiro. Então choverá sangue sobre a terra inteira.” Na quarta-feira, “todo o ar ficará cheio de colunas de fumaça. Um cheiro extremamente maléfico de enxofre durará até a décima hora.” Mal sabia o ghostwriter grego de Tomé que tal evento anóxico já havia ocorrido sucessivas vezes no planeta e foi enormemente responsável pelas extinções em massa que aqui ocorreram. Há 252 milhões de anos atrás, por exemplo, a anoxia chegou à superfície dos oceanos. Em contato com a luz do sol, bactérias produtoras de hidrogênio sulfetado se multiplicaram nas águas e o gás desprendido delas destruiu a camada de ozônio que então havia. O ar tornou-se irrespirável. Destes antepassados dos dinossauros, sobreviveram apenas 5% dos que viviam na água e 30% dos que viviam na terra. Estima-se que depois dessa Grande Morte do período Permiano-Triássico, a vida demorou 10 milhões de anos para se restabelecer. Segundo pesquisadores da Nasa (sim, da Nasa), é provável que isso volte a ocorrer na virada do século. Ninguém ousa mais imaginar como será o século XXII.

O Franco “Bifo” Berardi escreveu que a humanidade moderna era neurótica. E que, a partir de 1968, surgiu a humanidade pós-moderna e paranoica. Depois de meio século de Freud e de meio século de Deleuze e Guattari, Bifo diz que agora, pós-pandêmicos, prestes a extinguir, vivendo apocalipses diários, teremos um novo diagnóstico coletivo. A ver. Já o grego antigo era mais versátil. Todos tínhamos quatro humores segundo Hipócrates: colérico, sanguíneo, fleumático e melancólico. Cada humor relacionado não a um planeta (hahaha), mas a um órgão do nosso próprio corpo: fígado, coração, “sistema respiratório” e baço, respectivamente. Como se vê, tenho lido tudo o que não é literatura. Virei especialista das causas e efeitos da chamada contrarrevolução neoliberal, isto é: a epigênese desalmada do fim do mundo (as we know it). And I feel fine. De nefelibata absorto, virei um colapsologista amador. As leituras vieram em boa hora. Imaginem vocês que semana passada fui operado às pressas após 20 horas de dor ininterrupta causada pela falência de minha própria vesícula. Nem três doses de morfina na veia fizeram a dor desaparecer. Quando me disseram que finalmente eu seria operado, a morfina chegou no meu ouvidinho e disse baixinho: vamos curtir, baby. Quando acordei estava levitando. Perguntei: o que vocês me deram agora? Responderam: propofol. Pensei no Michael Jackson. (Confesso que quando eu comecei a esboçar esse texto eu ia escrever sobre a Madonna, bell hooks, Rosalind Gill, Sinéad O’Connor e o século XX e tal. Mas o bonde passou.) 

Desde a benção da morfina na maca hospitalar, sou um homem sem vesícula, isso significa que eu não mais armazeno bile amarela. No entendimento dos Quatro Humores de Hipócrates, o excesso de bile amarela - a colérica - está associado à ansiedade, instabilidade emocional e tensões em geral. Pelo diagnóstico dos gregos antigos eu não estocarei mais este combustível renovável da paranoia pós-moderna dentro de mim. A partir de agora, minha cólera será digerida direta e mais rapidamente pelo fígado. Bifo, estou pronto para a nova condição psíquica. Mas isso não é uma dica de saúde. Muito pelo contrário. Não tentem isso em casa, crianças. Cuidemos com carinho da nossa finitude e da finitude da nossa comunidade. Há muito ainda por viver e fazer antes do hidrogênio sulfetado envenenar a atmosfera. Abaixo, uma lista de entidades para as quais a gente deve colaborar para remediar a catástrofe ambiental e política do Rio Grande do Sul. Este sim o passo mais urgente para adiar o fim do mundo:

Cozinhas solidárias do MST 

PIX: 09352141000148 (Instituto Brasileiro de Solidariedade)

Cozinha Solidária da Azenha, do MTST 

PIX: enchentes@apoia.se ou pelo site apoia.se/enchentesrs

Rede de Bancos de Alimentos e Bancos Sociais do Rio Grande do Sul 

PIX: 04.580.781/0001-91 ou pelo site www.doealimentos.com.br

Central Única das Favelas (CUFA) e a Frente Nacional Antirracista (FNA)

PIX: doacoes@cufa.org.br. Em parceria com a GOL, a CUFA espalhou pontos de coleta de doações no Rio de Janeiro e nas unidades da GOLLOG por todo o país dos itens mais necessários (alimentos não perecíveis, roupas, produtos de limpeza e higiene pessoal, água, calçados, cobertores).

A Federação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Rio Grande do Sul

PIX: 46829259000104 

Quilombo dos Machado 

PIX: quilombodosmachado@gmail.com

Pessoas fora do Brasil também podem doar à campanha centralizada do movimento indígena do Rio Grande do Sul pela conta do IBAN: BR9500000000003210001288 / 911C1, código swift BRASBRRICTA

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Criado por

Mariano Marovatto
(Rio de Janeiro, 1982)

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