Cromestesia

1. Não é possível calar o ruído que vive entre o maciço da Tijuca e o Oceano Atlântico. Mas se fosse possível, duas constantes sonoras ancestrais seriam ouvidas: as ondas quebra- ndo na praia e o canto dos pássaros que vem das árvores.
2. Desde antes do extermínio dos tupinambás, e antes mesmo do seu nascimento, os pássaros já habitavam por centenas e centenas de anos as florestas dos arredores da Baía de Guanabara. E muito antes dos seres humanos, os pássaros já haviam inventado o canto e todas as escalas sonoras que nossos ouvidos são capazes de escutar.
3. Olivier Messiaen foi o grande compositor francês nascido no século XX. Além da música, Messiaen entregou sua vida a outras paixões em comum com a cidade do Rio de Janeiro: o cristianismo (veja só aquela estátua no topo do Corcovado), a ornitologia e as cores. Segundo ele, o espetáculo das cores estimula os pássaros. Tanto que, por conta disso, as aves todas, do mundo inteiro, cantam despudoradamente no nascer e no pôr do sol. Nestes dois momentos do dia o céu ganha uma quantidade enor- me de tonalidades: do breu vindo do espaço ao amarelo do sol.
4. Há quem diga que o Rio de Janeiro é um grande espetáculo de luzes a qualquer hora do dia. Impossível distinguir qual o sol mais arrebatador sobre o morro Dois Irmãos: se o das seis da manhã ou o das quatro da tarde. Para Messiaen as cores musicais são muito diferentes das cores visuais.
5. Messiaen já foi na floresta amazônica, mas não sei se visitou o Rio de Janeiro. Ao redor do mundo, no meio do mato no Japão ou na África tropical, ele costumava anotar o canto dos pássaros. Fazia um exercício que não era o de coletar ou analisar o timbre das aves, mas anotar um simples e austero ditado musical vindo da natureza. Ouvia aquela única vez e anotava na partitura conforme seus ouvidos haviam entendido aquela sucessão de pios.
6. Messiaen era fã de Villa-Lobos, o grande compositor brasileiro (e carioca) do século XX. Heitor Villa-Lobos era vinte anos mais velho que Messiaen. Não sei se escutou as principais obras do francês como o Quator pour la fin du temps ou o Catalogue d'Oiseaux e a Chronochromie, compostas durante os últimos anos de vida de Villa-Lobos. Porém, o mais importante nessa amizade que nunca aconteceu era a paixão em comum e anormal pela música de Claude Debussy.
7. Conta a história que Villa-Lobos escutou Debussy pela primeira vez em LP, de frente para a praia de Itapuã, em Salvador. Essa história por si só vale como um dos mitos fundadores da música litorânea brasileira. Na música de Tom Jobim há muito Debussy e muito Villa-Lobos.
8. Conta a história que Messiaen, para não morrer de tristeza na prisão durante a Segunda Guerra, repassava mentalmente cada instrumento, cada voz, cada cena da ópera Pelléas et Mélisande de Debussy. Tom Jobim amava os pássaros do Rio de Janeiro: sabiá, corruíra, tiziu, tiê-preto, tico-tico, tucano, urubu, marianinha-amarela, barulhento, sanhaçu, todos juntos, sem qualquer partitura. Messiaen admirava particularmente em Villa-Lobos as suas orquestrações.
9. Há gente por aí que diz que as aves europeias (o melro, o tordo, o rouxinol) cantam de forma mais respeitosa entre si. São solistas e também plateia. Já as aves daqui são um coral em convulsão. Uma superpopulação de cores cantando ao mesmo tempo.
10. Messiaen tinha um grande amigo pintor que morreu jovem, dotado de uma estranha condição neurológica chamada de cromestesia: ouvia o som das cores. Devoto de São Francisco de Assis, Messiaen tinha inveja.
Texto originalmente publicado no livro Som & Pausa, organizado por Fabiane Pereira (Guarda Chuva, 2015).