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capa de raissa

Querido Mariano,

 

Estirado sobre o “estirâncio”. Você vem deitando pelo mundo mesas lautas. Percorro estas palavras novas, seus arranjos. A própria palavra estirâncio, lidos e relidos os textos do livro, penso que continuará infamiliar. O termo me conduz até outro, também muito bonito, também infamiliar, “entremarés”. Descubro-os sem realmente integrá-los. Há uma resistência. Que significaria isto, compor a partir de uma resistência? Da dificuldade em assimilar determinada paisagem, acerca da qual hipotetizamos, obsedados, vezes sem conta, embora ela esteja ali, bem ali, à nossa frente. “Triunfalmente seco”. Os pequenos itinerários aqui encenados – da areia até o mar; do ralo que suga restos de férias até os coqueiros regulares, bem-espaçados, “eternos”; de imagens de vida a imagens de morte – me falam de um grande estar a meio do caminho. A regularidade dos coqueiros, a respiração das marés, o ritmo estampado às ações descritas.

 

Tiro proveito da persistente infamiliaridade do termo, arrisco uma definição: estirâncio é pensar entrepostos; remete ao que ainda se pode fazer a meio da vida. Não é a impressão que deveríamos ter aos trinta e poucos anos de idade, a de estar bem no meio da vida? Com alguma sorte. Demorar-se nisso, portanto. Juntar forças. Juntar imagens, gatilhos de histórias, como quem convalesce. O estirâncio é um acontecimento entre marés. O lusco-fusco, um acontecimento entre gradações de luz. Comparecem ambos. Significarão uma pausa de sanatório no mundo? “Esteve doente durante a temporada?”

 

Trata-se também de um lugar com o qual dialogamos descrevendo-o. “Conversar com o estirâncio significa relatar o seu aspecto”. De um só golpe, portanto, conversa-se com este meio e conversa-se a respeito dele. É um alargamento de nossas atitudes habituais frente aos objetos. Descrever é, de costume, gesto imobilizador, fixante – uma subjetividade se debruça sobre uma coisa e diz como ela é. Aqui, não. Dizer como é qualquer coisa parece embutido numa conversação mais ampla com a coisa. Pensar entrepostos, é uma imaginação. Este meio do caminho, meio de vida, alia receptividade à impraticabilidade; a vida clara, dura e inconteste das coisas que não penetramos não é menos clara, menos dura nem menos inconteste porque não podemos nos integrar a elas. A vida esfrega sua opacidade em nossas caras. Computamos, calmos, as feridas.

 

Os bons textos, os que nos ficam, os que convidam não exatamente a uma leitura mas a um frequentação densa, devem ter em mira a mesma coisa, apesar da multiplicidade praticamente infinita de procedimentos: falar sobre este mistério, a indiferença das coisas, essa incapacidade de fusão, este “estar em meio a” que tanto dista de estar “dentro”. Ver escoar. Trabalho de reformular, reativar, fazer reviver constantemente um claro enigma.

 

O encadeamento por vezes improvável entre ações torna, para mim, cada ação perfeitamente visível. Tantas narrativas fervilham aqui em potência ou espectro. Na calma aparente com que as coisas se dão, podemos ver como são merecedores de relato todos estes tipos que vieram dar a este lugar. O “solitário”, o “projetista de abandonos”, o sujeito ao centro, ele é sozinho na medida em que o somos todos. Sozinho com olhos para ver que estamos todos sozinhos, sozinho com ouvidos para captar o caráter “indefeso” de uma alegria. Sobretudo, com olhos, olhos “triunfalmente secos” para ver qualquer coisa escoar, gota a gota, até o fim.

 

Seu amigo, Ismar Tirelli Neto

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