Fim da greve

Pronto. A Fábrica de Parafusos Marte está de volta à sua linha de produção nada fordista. Vocês estão bem? Foi um hiato de alguns anos (pandêmicos terríveis) até aparecer novamente aqui na vossa caixa de correio eletrônico. Sobre o vírus, e também sobre os polvos, os fungos, a farofa, a cachaça e as baleias, prometo que falaremos bastante. Mas depois. Agora fiquei pensando que é também (menos) terrível, em termos antropocênicos, a newsletter se chamar Fábrica de Parafusos Marte. O nome a princípio era uma homenagem. Em setembro de 1960, Luís Inácio Lula da Silva foi contratado pela Fábrica de Parafusos Marte, pela primeira vez como metalúrgico. Lá ele fabricou parafusos o suficiente para arcar com o curso de torneiro mecânico do SENAI e finalmente completar o ensino secundário. A Fábrica de Parafusos Marte de Lula ficava na Estrada de Lágrimas, no Ipiranga, em São Paulo. Parafusos marcianos fabricados pelo Lula na Estrada das Lágrimas me parecia o sítio ideal, distante, mesmo que triste, e reconfortante, daquele espaço-tempo tenebroso de bolsonarismo virótico. Hoje percebo o quanto sintomático é esse nome. Mas não posso simplesmente abandonar a fábrica-de-um-homem-só dos meus parafusos mentais. Afinal, ela não causa danos ao meio ambiente. E acho. E creio que a ideia agora seja conceber parafusos inesperados, incongruentes, inadequados ao passado vigente, mas talhados pela realidade/presente, esse lugarzinho desconfortável entre a imaginação/memória e a distopia/paranoia. Não era para rimar.
Emma Stone. Taí uma parafusa inesperada. A primeira coisa que me vem à cabeça quando penso em Emma Stone é uma frase demolidora de meu amado Ismar (Tirelli Neto) dita anos atrás, ele, a maior sumidade em cinema que pisa sobre a Terra. Sério. Ao final de uma tragada, disparou o poeta: “Agora todas as moças que ganham o Oscar chamam-se Emma.” Batata. Anos depois (semanas atrás), fui então ver Poor Things pensando em como tinha achado hipster e ruim (desculpe o pleonasmo) o Lobster (o único outro filme do Yorgos que vi) e como tinha odiado La La Land (e sua protagonista Emma), mesmo sem ter assistido. Mas aí pronto, Hollywood me faz um filme excelente. Quando acabou, me dava raiva dar o braço a torcer enquanto fazia as primeiras (e rasteiras) sinapses sobre o filme: a visada política de uma realidade steampunk, o humor e o ácido (com duplo sentido) do narrador (que jamais será!) machadiano, a família queer composta de corpos crip (nota mental: ler o livro Corpos Crip, de Christine Greiner), a inteligência charmosa em todas as atuações, enfim, muita coisa e muitos parênteses. Mas quando ela passa por Lisboa e vive sua plenitude lisérgica de Alice no País das Alfacinhas - aí me pegou. Não darei mais spoilers, mas anotemos a frase: “I’ve adventured and found nothing but sugar and violence” saída dos lábios da protagonista quando perguntada sobre o que achou da capital portuguesa. Releiam. Muito bem. Mal sabe Yorgos que um belo dia, Oswald de Andrade escreveu um texto chamado “País de sobremesa” sobre o filho pródigo de Lisboa, chamado Brasil. “Exportamos bananas, castanhas-do-pará, cacau, café, coco e fumo”, e consequentemente, diz ele, “só podemos figurar no fim dos menus imperialistas”. Autoproclamado subversivo, Oswald sonha no texto em tecnizar o nosso Eldorado, “lastrear com nosso ouro o nosso papel” para “fazer estourar Londres ou Nova York”. (Há 90 anos sonhava-se assim em voz alta nos jornais.) Porém, para manter a pastelaria da escravocracia pré-industrial funcionando seria preciso enormes quantidades de pessoas desterradas da Costa da Mina e de Angola, e o dobro em violência. Pusemos açúcar derretido sobre as chagas da colonização lusa. “Rubras cascatas jorravam das costas dos santos, entre cantos e chibatas”. Glória aos piratas. Nossa, que refrão. Me perdi. Me comovi e me perdi. É noite e chove lá fora e de fato pus o João Bosco cantando “O mestre sala dos mares”. Aliás, assistam o clipe do Luca Argel dessa mesma canção. Ele está lá em Lisboa revisando essa violência atávica com festa, cantando esse samba (e todos os outros também) para a plateia portuguesa. No meu livro defendo a tese de que Oswald de Andrade foi o modelo de alegria e masculinismo para Vinícius de Moraes. Caetano, dois anos atrás, disse ao Roda Viva que quem inventou que o brasileiro é alegre foi Vinícius. Enfatizo: foi Oswald que plantou essa ideia louca e proibitiva na cabeça de Vinícius quando estavam os dois em Lisboa!
O carnaval acabou de passar e o ano começa agora aqui no Rio de Janeiro. O carnaval é uma substância espinosiana. Uma vez submersos nela são aguçados em nós o senso de criação coletiva e a percepção de que tudo do lado de fora dele é absurdo e injusto. A circunscrita felicidade cotidiana, feita de nortriptilina, sertralina, citalopram, venlafaxina, pregabalina, lorazepam ou alprazolam, experimenta na terça-feira gorda um desvio, um atalho, e se comunica finalmente, numa língua franca, com a comunidade grudenta, purpurinada e colorida debaixo do sol. Como diria Batatinha: “É carnaval, é hora de sambar. Dona tristeza, dê passagem à alegria, nem que seja por um dia, pois respeito sua posição”. Mark Fisher, que nunca veio ao carnaval carioca e tomava alguma dessas substâncias (até o dia em que não aguentou mais a barra), diria que Poor Things “performa nosso anticapitalismo para nós, nos autorizando assim a continuar consumindo impunemente”. Ele está certo. “Viver não é brincadeira não”, emendaria o Paulinho da Viola, citando sua própria canção sobre o capital. A playlist está à toda. Anna Luiza leu de cabo a rabo a sua xará, Anna Kariênina. A jovem russa vive agora conosco. Só Anna Luiza conhece o seu rosto. Eu que ainda não li, só vejo a presença. доброе утро, Anna Arkadiévna. еще кофе? Assim faz a ficção: mágica (na falta de um termo melhor). Bella Baxter existe mais do que Emma Stone. As duas personagens nos fazem recobrar que pertencemos a um todo, a despeito dos caquinhos em que Realismo Capitalista (aka Neoliberalismo) nos transforma às segundas-feiras. Uma torcedura mágica similar é provocada pelos dias de carnaval. Um intervalo em que a miséria neoliberal dá lugar à uma solidariedade delirante inerente à sociedade possível. Não é uma solução. Mas pode valer mais do que um versinho. Mas por hoje chega.
Pena, queria ter sido mais sucinto para poder também falar sobre a minha paixão recente por Paul B. Preciado. Um otimista patológico. Temos tomado café juntos esses dias, com Anna Kariênina e Anna Luiza. Falarei sobre ele na próxima cartinha. Por enquanto, vejam que fofura é Paul no closet da Criterion, escolhendo seus filmes prediletos.
Beijos.