Futebol, memória e ceticismo

quele vídeo do homem com sotaque britânico num talk show explicando aos norte-americanos como a FIFA é uma entidade tão assassina e corrupta feito um governo de um país ditatorial africano é bom no que diz respeito a sua eficaz simplicidade em colocar a tal entidade no seu devido lugar de criminosa diante do público televisivo dos Estados Unidos. O meu personalíssimo porém sobre o vídeo do homem com sotaque britânico é em relação a afirmação de que o futebol é uma religião e que ele, enquanto fervoroso devoto do esporte bretão, vai acompanhar os jogos com a culpa de saber que o seu deus é na realidade a personificação do diabo. Pois: eu nunca me entendi bem com crenças ao longo da vida. Analisando em re- trospecto todos os capítulos da minha relação com religião, todos, sem exceção, me parecem uma triste perda de tempo em épocas sombrias que só se tornaram mais sombrias com o uso desses amuletos enquanto muletas.
Minha relação com o futebol é amorosa. Ou melhor, era amorosa. Era porque foi sempre uma relação da infância com o esporte: O álbum de figurinhas de 1986 que dividia com meu irmão, os jogos nos recreios de 1989, o ranking dos melhores jogadores da turma que eu mesmo estipulava (e humildemente me colocava em terceiro lugar), assistir o Zico jogar e ficar boquiaberto com a sua genialidade (coisa que não via em Ayrton Senna, por exemplo, embora tenha sido uma criança muito mais entusiasta da Fórmula 1 do que do futebol), os álbuns da Copa União, ver na TV os torcedores da falecida geral do Maracanã correndo em direção ao atacante para comemorar mais perto do seu ídolo o golaço que ele fez, enfim. Deixei de gostar de futebol aos 12 anos, mesma época que guardei meus Comandos em Ação pra sempre numa caixa. Na adolescência transformava as partidas obrigatórias do colégio num espetáculo surrealista: pegava a bola com a mão e saia correndo da quadra, berrava no ouvido dos atacantes adversários durante a cobrança de escanteio e estimulava a prática do porradobol entre meus co- legas que lutavam jiu-jitsu. Importante frisar que nessa época eu era da galera do teatro e toda atividade em grupo e/ou perante um público era motivo pra diversão. Diversão para mim, pelo menos. Com exceção da admiração pelo Zico – que gerou a minha predileção pelo Flamengo – o fato é que nunca coloquei o futebol no lugar do fanatismo.
Meus grandes amigos flamenguistas Pedro Birman e Domingos Guimaraens tentaram me catequizar ao me levarem consecutivas vezes ao Maracanã na última década. Minha primeira vez por lá foi em 2006, um Fla Flu. Já tinha entrado no Coliseu de Roma mas nunca tinha entrado no antigo Maracanã. Foi assombroso. Era um dia nublado, as cores dos dois times em campo e a força da torcida rubro-negra talvez sejam as coisas mais arrebatadoras do futebol recente. Um espetáculo religioso muito mais bonito e com muito mais crueza do que qualquer encenação da paixão de Cristo em qualquer escala (pessoal- mente suspeito que a hégira seja mais atordoante que um Fla Flu, mas nunca presenciei uma). Mas depois de anos seguidos – diga-se de passagem, sem nunca ver o Flamengo perder no Maracanã – o que mais me importava nesses dias era estar sentado ao lado dos meus melhores amigos para falar sobre a vida, entre uma jogada e outra.
Da copa de 86 só me lembro das ruas pintadas e do álbum de figurinhas de seis páginas. A copa de 90 me lembro muito bem, principalmente do gol do Caniggia contra o Brasil que assisti lá na casa da minha tia na Tijuca. Na copa de 94 estava tão angustiado na final que não vi as cobranças de penaltis e sai do quarto escuro onde me tranquei somente quando iniciou a berraria pós-chute do Roberto Baggio para fora. Chorei com a vitória, mas lembro muito bem da cara de ceticismo do meu pai assistindo a comemoração do tetra. Tinha ali naquela euforia alguma coisa errada. Em 98 assisti os jogos com meus amigos, mas não lembro de nenhum. Lembro sim que no intervalo da final entre Brasil e França sai da casa de onde estava assistindo a partida na Gávea e fui andando até o Leblon encontrar outros amigos em outra casa. Não havia absolutamente nada nem ninguém nas ruas a não ser a voz do Galvão Bueno saindo pelas janelas de todos os prédios do caminho. Em 2002 passei parte da copa às voltas com meu apêndice: crise de apendicite, operação e recuperação. Vi a final sozinho deitado no meu quarto, ainda cheio de pontos no umbigo. Em 2006 e 2010 assisti ao lado do Domingos e do Pedro como se estivesse no Maracanã assistindo aquele Flamengo que nem era mais do Zico.
Nesses últimos momentos, antes do pontapé inicial da copa de 2014 no Itaquerão, já me ofereceram participação no bolão da galera, ingressos para assistir jogos com seleções que me apetecem como Irã e Honduras em cidades distantes como Manaus, por exemplo, e até já combinaram comigo, à moda carioca, diversos lugares para assistir os primeiros jogos do Brasil. Mas, fazer isso tudo em nome de que? Desde que tudo e todos saíram do armário da política em junho do ano passado – vejam bem, senhoras e senhores, já temos um ano que estamos diferentes – é impossível não enxergar todo esse espetáculo com o ceticismo (não digo pessimismo) que só cresce e amadurece desde então. Não há a menor graça no Neymar, no Felipão, no sei lá mais quem, nesse estádio que colocaram no lugar do Maracanã, nesses milhões de toneladas de armações de ferro e banners temporários espalhados pelas cidades-sede do mundial, nessa imensa quantidade de militares carregando fuzis e coletes à prova de balas ao lado de turistas coloridos e sorridentes, nessa estranha massa de brasileiros vestidos de verde e amarelo fazendo cosplay de brasileiros (como li outro dia no Facebook e achei muita graça), nessas bandeiras do Brasil feitas de plástico penduradas em algumas janelas residenciais e em todos os prédios públicos (como se o país fosse uma parada de 7 de setembro que durará um mês). Não há a menor graça nos que culpam exclusivamente o governo do PT em relação aos gastos criminosos da copa. Não tem a menor graça os que defendem o mundial em nome do PT. É de uma tristeza profunda saber que todos sabem, independentemente do seu ponto de vista ético e político, de alguma forma, a quem de fato interessa todo esse mega espetáculo faraônico da copa.
A cada dia que cresce mais o nosso ceticismo, fica mais difícil distinguir os interessados no evento dos interesseiros do evento. Estamos sendo obrigados a comparecer na festa mais cafona do planeta. O Brasil são os outros. Há muita gente que pensa o mesmo e escreveu melhor do que isso. Muita gente vai apanhar, muita gente será presa, talvez pouca gente (ou muita gente) morra por não se alinhar à copa. Machado de Assis, nosso maior cético, uma vez escreveu que achava muito estranho as pessoas levarem uma vida normal na Rua do Ouvidor depois da traumática Guerra do Paraguai. Talvez muita gente tenha pensado o mesmo depois da Confederação dos Tamoios, da Revolta dos Malês, do massacre do Carandiru, da destruição do Quilombo dos Palmares. O mais assustador é realizar que o Pão de Açúcar continua e continuará impávido colosso mesmo depois de tanta estupidez. Talvez o que restará de bom do futebol será a memória. Talvez eu esteja enganado. Talvez não.