Hoje

Não há tempo para floreios. A destruição da delicadeza está em curso. Os ideais serão arruinados até o cerne arqueológico, mutilado e adaptado para que caiba no futuro livro escrito pelos vencedores. Não por nós. O nosso livro é efêmero. Amanhã, postos os pés nas ruas, tudo será desconhecido.
Hoje um homem carregava uma linda brochura da bíblia no metrô. O amigo dele domesticado pelo mesmo livro, segurava seu ombro. Um riso amarelo. Um canto de meninos tupis saudando a chegada do Salvador. Eu não ouvia nada com meus fones de ouvido. Na minha mão um poema da Anna Akhmátova, escrito na época em que ela se ajoelhava aos pés de Stalin, submetendo sua escrita aos esforços do regime para livrar o filho da cadeia. O regime não livrou. Não sei mais se o filho de Akhmatova resistiu em São Petesburgo. O afago do Salvador serve somente aos impunes. A poesia não vai salvar porra nenhuma.
Dezesseis anos antes do golpe, fui à Biblioteca Nacional com minha turma de literatura portuguesa da faculdade. Francisco Weffort, ministro da cultura, também estava lá acompanhando o novo presidente da Embratel, um norte-americano. O norte-americano fingia melhor interesse pelos antigos livros portugueses do que Weffort com sua apática cara gorda de sono.
Na mesma época entrei pela primeira vez no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira. Havia lá a cadeira do funcionário indicado pessoalmente pelo José Sarney. Havia um cômodo improvisado para abrigar a cadeira do funcionário indicado pessoalmente pelo Sarney. Havia um computador na mesa em frente a cadeira do funcionário indicado pessoalmente pelo Sarney. Não havia mesmo era o funcionário. Vez ou outra, havia. Entrava, branco, grisalho, pançudo, com um eterno semblante de estou derrotado me olhem. Não se demorava muito. Desaparecia com pastas debaixo do braço. Voltava alguns meses depois, igual.
Lembro ainda das baratas que acordavam mortas aos pés dos pesados arquivos metálicos onde eu e os outros funcionários guardávamos os papéis mais importantes da literatura brasileira. A sala dos papéis ficava atrás de uma velha porta de madeira, num subsolo sem janelas. Uma fresta lateral no chão, onde havia outra porta, trancafiada, servia de respiradouro bem como de entrada das baratas. Colocávamos uma pano com inseticida para evitar sua invasão em massa. Do outro lado dessa porta trancafiada estava a cozinha onde comiam os funcionários terceirizados do prédio inteiro. Algumas vezes eu era o responsável por retirar os cadáveres das baratas pela manhã. Com vassoura em punho, tentava adivinhar, pelo cheiro, o prato do dia que era preparado no cômodo ao lado.
Pouco tempo depois informaram-me que o novo ministro Gilberto Gil visitaria o Arquivo-Museu. Lá estava ele numa manhã, de terno, com seu enorme penteado de dread locks, cercado de assessores. Era o único negro no prédio, pensava eu, com exceção do Seu Miguel, o segurança que controlava a entrada e a saída dos visitantes.
Voltei ao Arquivo-Museu depois de alguns anos. O funcionário indicado pessoalmente pelo Sarney “havia se aposentado”, me informaram. O arquivo metálico agora era outro e ocupava uma sala duas vezes maior, climatizada, feito com pequenos corredores deslizantes. Para chegar até ele precisei passar por duas pesadas portas corta-fogo e por nenhuma barata morta.
Francisco Weffort dizia que a cultura brasileira deveria ser resplandecente aos olhos dos visitantes europeus. Weffort parecia um seguidor de Couto de Magalhães, autor de “O Selvagem”, livro que explica as nossas raças primitivas aos homens interessados no Brasil entre o concerto das nações. Gilberto Gil era a cultura em si com um violão em punho no grande salão da ONU, interessado no desconcerto desse Brasil gordo, apático e branco.
Antes de saltar do metrô, volto os olhos novamente para a belíssima bíblia amarela na mão do homem domesticado. Ontem uma mulher foi estuprada por mais de 30 homens e sei que quem carrega uma bíblia dessas na mão afirma, sem pestanejar, que a culpa foi inteiramente dela. Saio da estação em direção à escola ocupada onde lerei em voz alta o poema de Ana Akhmátova para os alunos e para as mulheres que lá estarão: “Eu estava bem no meio de meu povo, lá onde o meu povo infelizmente estava”. A destruição está em curso. Tudo vai demorar, mais uma vez.
Originalmente publicado em Golpe: antologia manifesto, organizado por Ana Rüsche, Carla Kinzo, Lilian Aquino e Stefanni Marion (Punks Pôneis, 2016).