Manuel Bandeira é o mais sincero dos oráculos. Somente ele pode nos dizer sem que levantemos a sobrancelha do “porém”, as orelhas do “mas, mas...”, que “a vida é uma agitação feroz e sem finalidade / que a vida é traição”. Bandeira deve ser o poeta predileto de Charlie Brown e deveria ser de toda a gente. Um dia eu resolvi ir para a Islândia. Aconteceu, finalmente, depois de mais de 30 anos de vida, depois de mais de 15 anos pensando na Islândia tal como a Pasárgada do Bandeira, d'eu ir pra Islândia. Disse para menos de cinco pessoas que iria para a Islândia. Três falaram que eu deveria era encontrar a aurora boreal. Fui então para a Islândia encontrar a aurora boreal e não vi a aurora boreal. Manuel Bandeira, seis poemas depois do poema dos versos que citei, escreveu que “os gelos polares tudo arrebentam”. E arrebentam mesmo, posso dizer agora que já fui e voltei da Islândia. E não há como tirar a razão de Manuel, que nunca foi à Islândia.

Por motivos que não cabem revelar aqui, antes estava em Lisboa, numa cama de hotel, querendo varar a janela do quarto e sumir por aí. Claro – ok – os motivos sempre vêm de expectativas não reveladas. Da miséria que é realizar que nada do que estava sendo planejado detalhadamente deu certo. Nada.

E todo aquele mundo que você estava pisando um segundo atrás, cheio de prosperidade, transforma-se num mundo que incontor- navelmente não é mais o seu. Daí a vontade de varar a janela e sumir. Sumir para onde, José? O planeta é tão pequeno agora. E não adianta o tempo parar ou correr desembestado porque o gosto da derrota será sempre a maior fadiga do ser humano. Mas, entre esperar a manhã e varar a janela, descobri um único jeito de ludibriar a derrota.

Meses depois do que estou contando aqui, meu amigo Sylvio Fraga Neto me copiaria de aniversário uns versos do Berrigan que traduzem perfeitamente esse sentimento vitorioso que é ludibriar a derrota:

Yea, though I walk / through the valley of / the Shadow of Death, I / Shall fear no evil – / for I am a lot more / insane than / This Valley.

Da mesma forma que dizem que dormir é para os bilionários, para passar sem medo pelo Vale da Sombra da Morte, por ser mais insano do que o Vale, é preciso também ter uns trocados (para curtir a insanidade plena). Quebrei meu porquinho no lugar da janela do hotel e comprei uma passagem da Icelandair.

Ao meu lado no voo, uma francesa muito bonita dispôs os quadradinhos de sua barra de chocolate no assento vazio entre ela e eu. Comi um. Depois ela deitou e dormiu usando as duas poltronas. Na minha frente uma outra moça lia um livro em chinês. Em volta todos falavam pausadamente o islandês. Na hora do pouso eu estava ouvindo a canção do Jonas Sá, “Looking for Joy”, na qual ele e Joana Adnet, pessoas que amo desde que amo a Islândia, cantam juntos. O avião aterrissou quando Jonas dizia o verso “I'm looking for the one who will be my home”. Cada avião da Icelandair é batizado com o nome de um vulcão da ilha. Cheguei no aeroporto de Keflavik com os óculos respingados de lágrimas.

Em frente ao hotel ficava um dos restaurantes mais famosos de Reykjavik, onde você pode comer o melhor ham- búrguer da ilha, ler livros em inglês e islandês – organizados por cores nas prateleiras abaixo do balcão –, tomar uma cerveja e lavar a sua roupa no subsolo do estabelecimento. Perguntei qual era a senha do wifi para o rapaz atrás do balcão e ele disse pausadamente: iloveyou. I – love – you.

Trezentos metros depois dali existe o Harpa, uma comoção arquitetônica no mundo das salas de espetáculo. Fui assistir John Adams tocado pela orquestra sinfônica islandesa na sala maior, e, na menorzinha, um trio punk formado por meninas que provavelmente falavam de morte enquanto revezavam baixo, guitarra e bateria. O Harpa fica na Baía de Kollafjordur, com vista para Engey. Engey é uma ilha e ao mesmo tempo uma das visões mais sublimes da fronteira do círculo polar ártico. Assim: imaginemos que uma parte do maciço da Tijuca seja um platô e que esse platô fique no mar, como se fosse o arquipélago das Cagarras, visto de Ipanema. Como era inverno, cubra o platô com uma espessa camada de neve e assista tudo isso com um vento de 120 quilômetros por hora.

Para estar na Islândia, é preciso saber ficar de pé. Durante a noite, o Harpa muda de cor inconsequentemente. Na saída do espetáculo, enquanto loiros de olhos azuis olhavam esse rapaz, mal vestido para um concerto, caminhando de botas e barba negra pelos corredores imensos, conheci a garota de casaco castanho. Dois bares mais tarde, ou duas noites depois, uma moça loira e bêbada avisou no meu ouvido: “don't think so highly of yourself”. Não há motivos úteis para visitar a Islândia. No balcão estavam eu, brasileiro vindo de Portugal, um holandês com o coração partido vindo do México, uma cantora folk norte- americana indo para o Japão e um islandês que mora na China passando as férias na sua terra natal. Exceto o islandês, nós estávamos ali confortavelmente sem rumo, rindo do nosso segredo compartilhado, muito estranho ao resto do planeta Atlântico afora.

Nos dias que sucederam essas noites, comi filé de baleia e testículos de algum animal que não soube identificar, tomei café, caminhei pelo lago congelado, fui aos museus, comprei alguns livros e discos, escrevi um punhado de poemas, tomei banho a céu aberto em águas aquecidas por vulcões, vi de perto gêiseres explodindo e por alguns instantes estive na lua, alheio a qualquer tipo de expectativa mundana.

Um dia fui até a queda d'água de Gullfoss. Para chegar até Gullfoss, antes, atravessa-se a divisória das placas tectônicas americana e europeia. Existe um caminho imenso feito dessa divisória que a cada ano aumenta em largura, fazendo com que vagarosamente a Islândia expanda silenciosamente o seu território. Caminhar a esmo sobre um corte profundo da superfície da Terra é coisa muito séria. Qual a função de caminhar, ali naquele caminho natural mais exposto da geologia do planeta, senão apenas caminhar ali, de norte a sul? Uma imensa bandeira da Islândia, no ponto de encontro das excursões de ônibus naquela altura da estrada fazia lembrar que coisas assim acontecem quase que exclusivamente naquele país. Não dá para dar a certeza plena, já que a Terra é esse planetinha surpreendente e a Rússia, por exemplo, é uma coisa incontestavelmente imensurável.

Para chegar até Gullfoss existe uma trilha de tábuas de madeira muito escorregadias e um vento três vezes mais forte do que o da Baía de Kollafjordur. Não há outra opção a não ser vencer todos os degraus até a beira da queda d'água. Gullfoss estava quase congelada completamente, mas ali descobre-se que é impossível deter qualquer força da natureza mesmo usando outra força da natureza. A água jorrava azul pelos cantos do gelo branco e espumoso da queda. O barulho do vento congelava o nariz e as mãos. É preciso manter-se inclinado para frente para enfrentar esse gigante islandês. É necessário berrar e se debulhar em lágrimas. Ali foi o único lugar que a palavra “arrebatamento” fez sentido para mim. Escrevi depois num poema que “o maior amor da minha vida / foi o vento que não me derrubou”. E nada foi maior antes ou depois disso. É como a “Cantiga” de Bandeira: “quero ser feliz / nas ondas do mar / quero esquecer tudo / quero descansar”. Matéria que passa, “liberta para sempre da alma extinta”. Se fosse budista, era a iluminação. Se fosse grego, não era eureka. Era somente Bandeira que sabe da força do gelo polar, e nunca foi à Islândia.

Na última noite fui ao meu encontro com a aurora boreal, que não foi. Atravessei três horas de ônibus na madrugada, deitei na neve no mais completo breu do céu do hemisfério norte. Nessa hora, nos fones de ouvido, estava tocando o Abbey Road. Expectativa para uma centena de pessoas que estavam espalhadas por ali. Nada no céu. De repente os cabos de força que atravessam o país, próximos de nós, exibiram uma surpre- endente luz dourada. Uma, duas, dezenas de vezes. Não era a aurora boreal, mas era impressionante. Todos berravam atônitos. As nuvens tomaram conta do céu mais uma vez. Era hora de voltar para casa (casa?).

No ônibus, a simpática senhora guia, muito triste, avisou-nos que existe uma garantia de dois anos para vermos a aurora boreal e que a chance de a enxergar é sempre de 50%. Talvez um percentual maior do que supõe a arte do encontro de Vinícius de Moraes. Gostaria muitíssimo que a passagem para a Islândia estivesse incluída nessa garantia. Para embalar o sono na estrada, a senhora guia contou-nos uma antiga história de fantasmas islandeses. Lá fora, o breu era completo. Sua última frase, antes de saltarmos do ônibus em Reykjavik, foi: “and remember, bring your children to Iceland”.

Bring your children to Iceland.
Bring your children to Iceland.

Poderia terminar essa crônica com algum achado moral, uma frase que possa nortear nossos descaminhos e que tenha palavras como “derrota”, “expectativa” e “casa” puxadas por outras como “arrebatamento”, “intensidades” e “sem finalidade” (que deveria ser uma palavra só, não duas). Mas no caminho da viagem elas se relacionaram e se desvencilharam de acordo com a paisagem. E, mesmo depois, já livre da derrota que carregava, o Bandeira muito sabiamente diria que “me arderá por toda a vida / a fina, a doce ferida...”. E arde. E sempre arderá. Cheguei no Rio de Janeiro dois dias depois, a tempo do início do carnaval.

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Escrito por

Mariano Marovatto
(Rio de Janeiro, 1982)

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