
O enigma dos bebês reborn continua firme. A trama vai se adensando a cada semana, destemperadamente. Há poucos dias um post no Instagram trouxe à tona uma questão terrível: “Espíritos podem se apegar a um bebê reborn?” “Existem relatos de mães que sentiram o reborn esquentar, respirar, ou ouviram choros à noite.” Pois afinal, “reborns são feitas para parecer reais. E o mundo espiritual reconhece essa forma. Ali pode virar um refúgio…” A coisa sempre fica mais animada quando se atravessa a fronteira vaporosa entre o que é de Toy Story e o que é de Chucky. Assim que li tais indagações, minhas sinapses atéias atravessaram extenuadas os meus córtex pré-frontal, parietal, temporal e occipital, mergulharam no sistema límbico, bateram na porta das áreas de Broca e Wernicke até que, finalmente, se fez verbo e me veio o nome daquela criança que a freira do Colégio Santa Madalena Sofia tanto falava nas aulas de religião: o Menino Jesus.
No Novo Testamento aprendemos (nós, forjados aos pés da Santa Cruz) que o Jesus menino retratado em Mateus e, sobretudo, em Lucas, aparece como uma criança obediente, reservada e progressivamente consciente de sua missão. Ou seja: a infância de Jesus na Bíblia as we know it é uma infância idealizada, sob controle e sem riscos — uma maternidade relativamente tranquila para a judia dona Maria, nossa senhora e sua mãe. Mas então? Então é o seguinte: o pouco que temos de Jesus criança no Novo Testamento é comparável a um bebê reborn, livre de exigências reais da vida de uma criança que, nos seus primeiros dias de vida, quase foi assassinada pelo rei Herodes. Desculpem por estar requisitando a realidade dos fatos às escrituras sagradas. Afinal, elas não foram compostas para discutir história, mas para serem a verdade e a lei. Ou, como nos lembra o saudoso Erich Auerbach: “Os relatos das Sagradas Escrituras não procuram o nosso favor, como os de Homero, não nos lisonjeiam para nos agradar e encantar — o que querem é nos dominar, e se nos negamos a isso, então somos rebeldes.”
Rebelde que sou, me ocorreu procurar mais evidências sobre essa criança reborn celestial em textos que o papa Leão XIV jamais aprovaria: os terríveis Evangelhos Apócrifos. Eles são muitos — segundo Paulo Leminski são centenas, eu contei quase 50 — deixados de fora do Novo Testamento. “Apócrifo” na língua de Platão quer dizer “escondido”, “secreto”, segundo o grande Frederico Lourenço que traduziu 17 deles, diretamente do grego. Mas estas acepções educadas são mais recentes: foi a partir de 200 depois de Cristo (logicamente). que estes livros começaram a ser perseguidos pela igreja, chamados de “falsos” e “heréticos”. A gota d’água aconteceu no Concílio de Cartago, em 397, que estabeleceu os 27 livros “oficiais” do Novo Testamento. Nenhum a mais, nenhum a menos. O resto foi considerado coisa do diabo. Manuscritos foram queimados, monges foram executados, bibliotecas foram destruídas, pregações foram proibidas. Mas o demônio é amigo nosso e boa parte dos textos sobreviveu. E aqui voltamos ao Menino Jesus.
A principal fonte de informação apócrifa sobre sua infância está no “Evangelho de Tomé sobre a infância de Jesus”. A primeira cena de Jesus, aos 5 anos, por exemplo, é arrebatadora. Segue a tradução de Frederico:
1. Este menino Jesus, tendo atingido a idade de cinco anos, brincava no vau de um riacho; e reuniu as águas correntes em lagoas e as fez logo puras; e realizou estas coisas apenas com a palavra.
2. E, fazendo barro maleável, plasmou a partir dele doze pardais. E era dia de sábado, quando os fez. E havia muitas outras crianças, que brincavam com ele.
3. Tendo um judeu visto as coisas que Jesus fazia, brincando no sábado, foi imediatamente e anunciou [o sucedido] ao pai dele, José. “Eis que o teu filho está junto do riacho; e, tomando barro, plasmou doze pardais; e profanou o sábado.
4. E José, indo para o local e vendo [o que se passava], gritou-lhe, dizendo: “Por que fazes estas coisas em dia de sábado, coisas que não é permitido fazer?”. Jesus, batendo as mãos, gritou aos pardais e disse-lhes: “Ide!”. E, voando, os pardais partiram, chilreando.
5. Vendo [isto], os Judeus admiraram-se; e, afastando-se, contaram aos chefes deles o que viram Jesus fazer.
Na beira do riacho, Jesus, de cinco aninhos, fez 12 passarinhos de barro e, num bater de palmas, deu vida a eles que saíram voando pelo céu azul de um sábado judaico. Por que a Igreja de Roma proibiria um texto tão singelo e emotivo? Porque logo na sequência Jesus não deixa barato. Depois de ser empurrado por um garoto, Jesus manda: “Não continuarás o teu caminho” e o garoto cai morto no chão. Os pais do morto vão até José tomar satisfação. Jesus não pede desculpas e deixa os pais do garoto cegos. Não para por aí. Jesus vai ter aulas com um pobre professor chamado Zaqueu. Bate boca com o professor por causa do alfabeto, afinal ele sabe mais do que Zaqueu, que fica transtornado. “Esse menino não é deste mundo”. Zaqueu resolve pedir as contas, chega de dar aulas! No outro dia, um moleque cai de um telhado e morre. As crianças fogem, Jesus fica inerte ao lado do morto. Adultos acusam Jesus de ter matado mais este. Jesus então ressuscita a criança e pergunta: “Zenão! Levanta-te e diz-me: fui eu que atirei?” Zenão, meio cá meio lá, mas vivo, afirma: “Não, Senhor! Não me atiraste, mas levantaste-me!” Os adultos então ajoelham-se diante do Menino Jesus. Zenão, ao que parece, não teve a mesma sorte que Jó e cai morto de novo no chão. E hoje em dia os pais andam assustados com uma série da Netflix, vejam vocês. Jesus apócrifo é o oposto do Jesus reborn de Mateus e Lucas. Não tinha SOE na escolinha lá de Nazaré e a constelação familiar de Jesus era de fato galáctica, expansiva e universal por parte de pai, impossível de se manejar. Quem poderia nos salvar do próprio Menino Jesus apócrifo? Quem poderá te salvar desse meu texto, caro leitor?
Me veio na cabeça um livrinho notável do Harold Bloom chamado Abaixo as verdades sagradas: poesia e crença desde a Bíblia até nossos dias. No capítulo chamado “Freud e além”, o autor afirma que a psicanálise é a “especulação mais influente do século”, e além de outras coisas, uma sinédoque do sentido errante do povo judeu, posto que Freud “é mais um dos autores de mitos judeus do exílio”. Pois muito bem, era o argumento que faltava para criar aqui um curto-circuito no texto, uma colisão de registros, uma crise de condução e chocar ainda mais o épico com o íntimo, o mito e o documento: e se levássemos o pequeno Menino Jesus para o divã. (Divã de boteco, arremedo feito dessas cadeiras de plástico. Deita aí moleque. Garçom, traz mais uma ampola verde, por favor.)
Enquanto o Jesus sapeca dos apócrifos age como figura mítica que performa o poder absoluto sem simbolização, o Jesus reborn dos evangelhos canônicos é uma figura sublimada desde a infância, moldada por uma missão sem conflito visível. Ambos são impossíveis clinicamente: um por excesso de Real, outro por ausência de desejo próprio. Lacanianos me corrijam. O apócrifo atua diretamente sobre a realidade, transformando o mundo com a própria vontade. Mata, ressuscita, desafia mestres, vive conflitos mágicos, mas sem punição alguma. Já o canônico tem uma presença física discreta, sem pulsão, sem falha. Não há transgressão, nem culpa visível, tal qual um reborn. Pensando com Winnicott, o canônico-reborn não tem uma espontaneidade subjetiva. Sua infância é um desempenho silencioso do ideal — não uma criação progressiva do Eu. Agora ninguém me segura. Por fim, o Jesus apócrifo não é um neurótico, afinal sua psique não recalca: atua direta e imediatamente na realidade. O apócrifo é puro delírio com plena autonomia, sem nenhuma oposição social ou simbólica. Mas, ao mesmo tempo, acaba se tornando uma criança que não sabe brincar, não desenvolveu o lúdico para mediar o real. E antes do corte lacaniano, um pensamento que deixa nossa análise clínica ainda mais insustentável: Maria, no Evangelho de Tomé, não aparece, é ausente (risos). Isso faz com que Jesus viva numa Nazaré onde o desejo da mãe nunca se inscreveu como falta. Seu poder vem de uma matriz sem lei, sem conflito, sem traumas. Ou seja: o pavor das mães de bebês reborns de ter um filho possuído por espíritos indomáveis é equivalente a ter que lidar inesperadamente com uma criança similar ao Jesus apócrifo. Nossas questões psíquicas infantis, sendo bebê apócrifo ou bebê reborn, serão sempre sobre o que pode ou não quando se é uma criança, sobre o papel do desejo materno, da autoridade e, claro, da linguagem, sempre ela, a verdadeira culpada disso tudo.