Lampião e o exército vermelho

Há 10 anos eu estava, com Anastasia Lukovnikova, nas proximidades da Estação Белорусский (Bielorrussa) em Moscou, durante as celebrações dos 70 anos da tomada de Berlim pelo Exército Vermelho, ou seja, comemorando o fim da Segunda Guerra Mundial. Anastasia gravou as imagens que depois se tornariam o videoclipe da faixa de abertura do meu disco Selvagem, chamada “Lampião”. Trata-se de uma regravação de uma cantiga famosa do sertão pernambucano em louvor ao mais famoso cangaceiro do mundo. Seu primeiro registro sonoro foi feito, inacreditavelmente, três meses antes da morte de Lampião.
Penso que a Missão de Pesquisas Folclóricas (que a gravou em nome do Departamento de Cultura de São Paulo, chefiado por Mário de Andrade), quando chegou no Sertão nordestino, deve ter passado boa parte do tempo pensando na possibilidade de um encontro fatal com os cangaceiros. Sabino, o outro cangaceiro citado na música, ficou famoso depois do ataque do bando no Rio Grande do Norte, em 1927 – era filho bastardo de um grande coronel pernambucano e aparece nas fotos sempre de óculos escuros. “Lampião” é uma espécie de proibidão do sertão. Assaltante, assassino, torturador, estuprador, racista, Virgulino Ferreira - visto por Hobsbaum como um “bandido social” - não era nenhum selvagem Robin Hood tropical. A fama, o poder, as habilidades e a crueldade de Lampião eram, para as forças políticas e policiais, motivo de inveja, não motivo de combate em nome da justiça. As crianças do sertão do século XX que viam a mediocridade das volantes policiais e o brilho das fardas dos cangaceiros, não demoravam muito para eleger seus verdadeiros heróis.
Há 10 anos, escrevi e um textinho sobre o videoclipe. De lá para cá, dúzias de novas camadas poderiam ser acrescentadas a este pequeno manifesto. Vocês, leitores, vão naturalmente preencher as lacunas vertiginosas e rasurar estas minhas palavras de uma década atrás. A história continua inclemente. O videoclipe, feito por Anastasia (moscovita, carioca e lisboeta), segue pleno na sua função de documento histórico: fiel e prepóstero. Abaixo, o texto:
1. A letra da canção diz “Minha mãe me dê dinheiro, eu vou comprar um cinturão. Ah, se a vida é boa, eu vou andar mais Lampião”
2. O vídeo foi gravado em Moscou durante as festividades de 9 de maio de 2015, o Dia da Vitória: exatos 70 anos da vitória russa sobre as últimas tropas nazistas. O dia final da Segunda Guerra Mundial.
3. No Dia da Vitória, os pais vestem as crianças com roupas de soldado e vão para as ruas aplaudir o desfile militar. Anualmente.
4. Até hoje eu guardo numa caixa a minha numerosa coleção de bonecos dos Comandos em Ação.
5. Lampião era assassino, racista e machista. Considerava os negros uns macacos, estuprava mulheres e fazia sangrar suas vítimas até a morte, com sadismo digno dos maiores torturadores da ditadura brasileira.
6. Enquanto os fazendeiros tinham medo da morte e da miséria dos ataques de Lampião, as tropas oficiais do governo tinham inveja da fama, da maldade ou da habilidade dos cangaço.
7. No final de 1937, Lampião entrou pela janela do quarto de minha avó, quando ela era pequena, lá em Pernambuco. Ao deparar-se com três crianças brancas dormindo feito anjinhos da igreja, o cangaceiro deu meia volta e foi saquear outra casa. Eu existo graças a um pequeno lapso de consciência de Lampião.
8. Entre 1937 e 1938, Joseph Stalin promoveu a maior onda de repressão do governo soviético até então, conhecido como o Grande Expurgo. Os números oficiais variam entre 600 mil e 2 milhões de pessoas mortas durante esse período.
9. A versão original da canção foi gravada em 9 de abril de 1938 na cidade de Pombal, na Paraíba. No dia 28 de julho do mesmo ano, Lampião foi assassinado pela volante do Tenente José Bezerra, no Poço Redondo, em Sergipe.
10. Quando o exército soviético chegou a Berlim em 25 de Abril de 1945, 55 milhões de pessoas já haviam morrido por conta da guerra. Estima-se que o regime de Stalin fez entre 11 e 38 milhões de vítimas.
11. Todas as estátuas de Joseph Stalin foram retiradas da União Soviética durante o governo de Nikita Kruschev. Há ainda muitos stalinistas na Rússia. Comparando, eles seriam vistos por nós, brasileiros, como aqueles que apoiam a volta da ditadura militar.
12. Oscar Niemeyer declarava-se um comunista stalinista. Quatro anos após a fundação de Brasília, os militares a tomaram durante 21 anos.
13. Quando criança aprendi que os americanos tinham caças F-14 Tomcat, os russos, MiG-21 e os brasileiros, o Tucano.
14. Quando criança aprendi que os americanos usavam rifle M-16, os russos, Kalashnikov e os brasileiros, o FN-FAL.
15. Nunca vi aviões Tucanos bombardeando, nem soldados brasileiros atirando com FN-FAL. A Guerra Fria, por outro lado, era um espetáculo maravilhoso, tanto na TV quanto nas lojas de brinquedos.
16. Penso que na década de 1980, ao contrário das crianças do oriente médio, as crianças norte-americanas, moscovitas e brasileiras jamais viram um campo de batalha.
17. Graciliano Ramos foi em quem mais pensei quando o vídeo ficou pronto. Afinal ele entende na mesma medida o cangaço, os soviéticos e a infância.
18. De onde vem o fascínio infantil sobre as coisas da guerra? Não há nada senão o horror em um campo de batalha. Não há infância se há guerra. Nunca vi a guerra, mas isso me parece óbvio.