Fui a um festival de música na beira do Tejo. O Massive Attack fechou a noite num show extremamente detalhista, repleto de caprichos sonoros e visuais, guiados pelo imenso telão atrás da banda, panfletário e corretíssimo nas suas mensagens. Em determinada canção, o telão mostrava as notícias recentes dos portais de notícia, em português. “Golpe na Turquia” e a plateia jovem branca europeia vaiava. “Portugal campeão da Euro 2016”, o mesmo público ia ao delírio. Na canção seguinte, uma listagem extensa de bibliotecas, museus, e antiquíssimas obras arquitetônicas destruídas por governos vis ao longo da história da humanidade. Aqui na parte isenta do hemisfério norte não sei como fazem ou entendem, mas eu já não sei mais distinguir “governo” de “vil”. Num dos últimos números da noite, o telão – no seu papel de distrair e comandar a multidão – enfileira uma sucessão de slogans, iniciados por “Je suis Charlie”, passando por “Je suis Orlando”, “Je suis Nice” e terminando com “Je suis Bagdad”. O público europeu se comove, aos goles de Super Bock que custam 4 euros. As luzes se acendem, todos retornam calmamente até o terminal de transportes públicos que funciona até aquela hora da ma- drugada, sem qualquer transtorno, por conta do festival. Penso comigo que ninguém ali tem a mínima ideia do que está acontecendo no Brasil ou em qualquer outra parte do globo abaixo da linha do Equador. A multidão irrompe com o grito “E foi o Éder que os fudeu!”, em homenagem ao jogador guineense que marcou o gol da vitória de Portugal sobre a França, em Paris. “Os franceses estão a comprar todos os prédios da Baixa lisbo- eta”, me disseram outro dia num táxi.


No supermercado da esquina de casa vendem “pêssegos do Paraguai”. Não raciocino o suficiente para dar o veredicto: será que de fato existem ou já existiram pêssegos no Paraguai? Não sei se o Paraguai anda exportando pêssegos para a Comunidade Europeia. Não sei nada do Paraguai. Não sei se o Paraguai ainda existe depois do golpe de lá. Lembro do Paraguai ter existido, parece, antes da Guerra do Paraguai. O Brasil também não sabe nada do que acontece abaixo da linha do Equador.

O Largo do Rato durante um tempo, no século passado, trocou de nome para Praça do Brasil. Não adiantou, todos continuavam a chamá-lo de Largo do Rato. O nome original voltou. A Avenida de Pedro Álvares Cabral desafoga no Largo do Rato.


Num jantar, conheci um prosador norte-americano casado com uma ucraniana. A Rússia e a Ucrânia estão em guerra por conta da Crimeia. O prosador afirma que, dias antes, eles haviam sido convidados para um outro jantar no qual agentes do go- verno russo também estavam presentes. “Claramente eram da KGB”, faz um pequeno e importante adendo, a moça da Ucrânia. Quando eles perguntaram sobre o que ela achava da situação política da Crimeia, ela disse que engoliu a seco e respondeu: “É uma pergunta difícil de responder em linhas gerais”. Os senhores da KGB retrucaram, frios, como de costume: “Então já sabemos de que lado você está, não é mesmo?”. O prosador norte-ame- ricano me pergunta sobre a situação do Brasil. Disse que leu em algum lugar que havia acontecido um impeachment e nada mais soube. Eu tomei um gole de vinho e respondi: “É uma pergunta difícil de responder em linhas gerais”.


Por conta de um evento literário na Fundação José Saramago, conheci a incrível Djaimilia. Djaimilia, nesse mesmo evento, leu cinco poemas meus. Talvez tenha sido a leitura mais bonita já feita de algo que eu tenha escrito. Djaimilia é de ascendência angolana e publicou recentemente o seu primeiro livro, Esse cabelo, que traz na capa o subtítulo “A tragicomédia de um cabelo crespo que cruza a história de Portugal e Angola”. É a história das próprias raízes de Djaimilia. Antes do evento, conversamos um bocado sobre a situação política do Brasil e sobre o movimento negro no Brasil. Djaimilia conta que pela primeira vez na vida, pelos jornais, ficou conhecida como luso- angolana. Ela deixou Angola aos três meses, sequer tem passaporte angolano. Pensamos então que Valter Hugo Mãe, branco, também nasceu em Angola e em nenhum momento teve que portar-se como cidadão luso-angolano. Pergunto se Djaimilia já foi ao Brasil. Ela disse que não. Conto-lhe alguma coisa. Ela percebe a urgência no meu tom de voz. A voz de Djaimilia é doce e carinhosa como as ruas de Lisboa. Na minha bagagem trouxe um caminhão carioca de angústias, percebo ali, depois de um sorriso silencioso e sábio de Djaimilia.

Originalmente publicado na Revista Pessoa.

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Escrito por

Mariano Marovatto
(Rio de Janeiro, 1982)

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