Lisboa, 2016 pt. 2

Outro dia troquei as esquinas do caminho e fui dar numa das artérias arborizadas das Avenidas Novas. Ali, caí num alfarrabista. Achei umas rechonchudas prateleiras dedicadas à literatura brasileira e encontrei o Ribeiro Couto, o velho amigo do Manuel Bandeira. Ao contrário desta estante, que sem hesitar posso dizer ser a única no mundo, nenhuma livraria, editora ou sebo brasileiro dá a mínima para esse contista, o que é pesaroso. Mas eu também não fiz por menos: deixei os contos de lado e levei o livro de viagens do senhor Couto: Chão de França.
Não sei se por erro de alguma espécie, Ribeiro Couto refere-se à Paris como “O Paris”. Penso como seria Lisboa no gênero masculino e me parece impossível. O Tejo sim é homem. Por vezes meu único amigo carioca na cidade, por vezes o distante deus Duberdicus, por vezes um senhor japonês que ri da minha cara de pateta.
Ribeiro Couto, por um erro de leitura meu, diz ser ele uma menina debruçada numa ponte sobre o Sena. Ela, essa Ribeiro Couto crossdresser, é que deve fazer de Paris um homem e do Sena sua Dinazarde, seu livro do travesseiro. Em pensamento coloco a Ribeiro Couto ao lado da Flávio de Carvalho e da Laerte. Olho para o céu limpo de Lisboa e volto ao livro de onde pesco mais uma frase: “o céu do Mediterrâneo, de um azul tão perfeito, exige uma analogia secreta: inocência”. Penso que se eu usasse vestidos em Lisboa, eu não me poria tão inocente diante dos céus, mas cantaria de preto, com pesado ar de viúva, um fado terrível. Não há viúvas inocentes. Os punks são inocentes, as viúvas não, nem as jovens viúvas, embora já não existam por aqui. O quietíssimo Machado de Assis tinha particular tara por viúvas. Lisboa, mesmo velha, sabe emular-se de viúva machadiana. Mas engana por pouco tempo porque não sabe nem meio maxixe.
Outro dia acompanhei minha querida amiga Beatriz Bastos até a casa de Adília Lopes. Fomos preparadíssimos, inclusive para o fracasso. Considerações a seguir:
a) O apartamento de Adília tem quatro janelas para a rua. As molduras das janelas de Adília são as únicas do prédio que ainda não foram trocadas pelas suas equivalentes em alumínio ou plástico. Ao mesmo tempo, são as únicas que carecem de pintura.
b) Adília não estava em casa. Tocamos duas vezes a campainha da rua. Não sabemos se foi ao cinema, à Gulbenkian ou ao supermercado. Penso que assim como Lisboa inteira, deve ter ido passar férias pelos lados do Algarve com família ou amigos. Penso, sem chegar a qualquer conclusão, como seriam os familiares, os amigos e o trabalho de Adília.
c) Adília, ausente deixou uma fresta ligeiramente aberta na janela da sala. As duas janelas seguintes entendo que sejam, em ordem: do quarto de dormir, do escritório e do banheiro. Todos os vidros possuem uma cortina fina branca com rendas. A janela do quarto é bloqueada por uma cômoda ou então pela cabeceira da cama. A do escritório quase me deixa ver objetos e livros, mas também está bloqueada por um móvel, provavelmente uma escrivaninha. Adília tem uma escrivaninha numa janela, de frente para a rua, o meu maior sonho lisboeta ainda não alcan- çado. A janela do banheiro é completamente indevassável.
d) A vizinhança de Adília é calma. Possui uma estação de metro pelas redondezas, e logo à esquina uma paragem generosa de autocarros que percorrem quase todas as rotas da cidade. As pastelarias do quarteirão de Adília não possuem o charme extra que me faria imaginá-la sentada a uma mesa tomando uma chávena com uma tosta mista, ou mesmo uma imperial, nas tar- des mais quentes.
e) Se não fosse pela fresta na janela da sala, ligeiramente aberta, concluiria que Adília não existe de facto, ou estaria morta há dias deitada no seu quarto ou mesmo jamais teria vivido naquele apartamento. Mas havia lá uma frestinha aberta na janela da sala confirmando a onipresença de Adília.
No dia seguinte ao 31 de agosto no Brasil, tinha eu deveres burocráticos com o estado português que me consumiram uma tarde ensolarada quase inteira. Muito confuso e angustiado, entrei numa pastelaria onde pedi um prego com queijo. Sentei de frente para a televisão e o movimento natural, para fugir da ojeriza que me remete esse aparelho por conta do William Bonner, troquei de lugar na mesa. De costas para as notícias, qual não é minha surpresa ao dar de cara com o mural de azulejos à parede representando, com cores nunca vistas em Lisboa, a praia do Leblon e o morro Dois Irmãos, que é a coisa mais impressionante que existe no Rio de Janeiro. Dou a primeira mordida no prego, respiro fundo e me afogo no mar do Leblon. Voltando das ondas, já encarando a segunda metade do meu preguinho, reparo desenhado nos azulejos, à direita, parado na ciclovia, um homem careca de sunga, meias e tênis. Feito eu, ele também contempla o Dois Irmãos. A imagem capturada ali, na parede daquela pastelaria na Avenida Alexandre Herculano, ao pé da Praça Marquês de Pombal, localização nervosa de Lisboa, é talvez a imagem mais antiga que guardo na memória. Desde que me entendo como transeunte do posto 11, eu sei que sempre houve e sempre haverá um homem de sunga, meias e tênis no calçadão da Avenida Delfim Moreira a contemplar a praia. Sei e vejo isto desde que nasci, não importa qual oligarca branco e velho esteja desgovernando o país.
Nota de pé de página: Delfim Moreira foi também mais um vice que assumiu a presidência do Brasil – entre julho de 1918 e junho de 1919. Dizem que, embora homem rico e poderoso, era fraco e temeroso (como todo homem rico e poderoso é). Durante seu período no cargo, sofria de certa doença que o deixava completamente desconcentrado de suas tarefas. Morreria, em decorrência de sua confusão, um ano depois. Penso que todos os vice-presidentes (que assumiram ou não a presidência) do Brasil, já estão todos mortos, mesmo os vivos.
Originalmente publicado na Revista Pessoa.