Como já disse antes, a verdadeira Fábrica de Parafusos Marte ficava na Estrada das Lágrimas, em Heliópolis, São Paulo. Mês passado descobri que também na mesmíssima estrada está em pleno funcionamento a Biblioteca de Heliópolis. Sei disso porque, coincidência ou não, o perfil da biblioteca começou a me seguir no Instagram. Um espanto feliz e aleatório da vida. Há uma espécie de mania de mitografar tudo o que nos faz sentido, creio. E a etimologia é sempre a primeira a ser convocada para dar ares de legitimidade à coisa. Pelo menos aqui em casa, onde eu e meu pé de tâmara evitamos a astrologia. Pois então: Heliópolis, “cidade do sol”. Fácil. Mas olha que assombro: na mitologia grega, quem fundou a cidade de Heliópolis (localizada no Egito), foi Átis, filho de uma daemon hermafrodita chamada Agdistis. Nascida de uma ejaculação de Zeus sobre a terra (fruto de um sonho erótico nunca verbalizado), Agdistis causava inveja aos demais deuses do Olimpo por possuir belezas e qualidades tanto masculinas quanto femininas. Os deuses então removeram o órgão masculino de Agdistis e o lançaram para bem longe. Assim começa a mitologia trans da Grécia Antiga. Pois bem. Do órgão abandonado, nasceu uma amendoeira. Quando a árvore deu frutos, Nana, filha do deus-rio Sangário, pegou uma de suas amêndoas e a pôs sob o seio. Resultado: engravidou e Átis nasceu. Nana abandonou o bebê (não se sabe o porquê), que foi então criado por um bode. À medida que Átis crescia, enquanto pastor da comunidade caprina em que vivia, sua beleza se tornava quase divina. Agdistis, agora uma mulher trans, ao vê-lo, acaba se apaixonando por ele. Para evitar o trágico enlace, Átis é enviado para Pessinunte e obrigado a casar com a filha do rei local. Durante o casamento, Agdistis apareceu e a torta de climão foi servida. Átis então enlouqueceu e, assim como fizeram os deuses com sua genitora, mutilou-se. Em meio à tragédia, o futuro sogro de Átis resolveu também cortar fora o seu órgão genital. Átis acaba morrendo. (Depois daí, o mito se desdobra em uma série de mortes e muita sanguinolência.) Ao final, Agdistis pede a seu pai Zeus para que o corpo de Átis permaneça incorruptível, e que seus cabelos jamais deixem de crescer, e que seu dedo mindinho continue a se movimentar. Feito isto, Agdistis então sepulta o cadáver do filho-amante e funda uma confraria de sacerdotes com o intuito de promover uma festa anual em memória de Átis. Fim. Mais detalhes não sei. (Dedo mindinho?) De qualquer forma parece que ninguém avisou o Doutor Freud da ocorrência. Vamos deixar ele lá quietinho e voltar a questão da etimologia.

Marovatto, por exemplo, que não quer dizer absolutamente nada na Itália, significa muitas pedras em malgaxe. Tô falando sério. “Maro”, muitas. “Vato”, pedras. Procurando bem em Madagascar, você acabará encontrando uma meia dúzia de vilarejos chamados Marovato. Todos eles vivem da extração de pedras preciosas e semi-preciosas. Tenho algumas pedras aqui em casa, por acaso. Um coral do santuário de Itsukushima, uma pedra portuguesa do Largo do Carmo, um seixo do Rio Ienissei. Nenhuma de Madagascar, para decepção dos meus patranhos antepassados.

Outro dia descobri a existência estrambólica do livro Chaos & Cyber Culture, escrito em 1994 por Timothy Leary. O “caos” do título, certamente se refere ao despojamento gráfico da edição, de dar inveja a Revista Ação Games, sua contemporânea. Mas, fora toda a surpresa em descobrir esse livro, o que queria dizer é que na página 62 do mesmo, Timothy nos avisa que a palavra “cyber” significa “piloto” em grego antigo. Fui verificar. É verdade. Veja só: "kubernao" significava "conduzir um navio". Logo "kubernetes" era o timoneiro. Já os romanos transformaram "kubernao" em "guberno", de onde vem "governar". É bem verdade, diz a internet, que Platão usou a palavra "kubernetika" como “habilidade em conduzir”. E por conta desse platonismo, na década de 1940, o matemático Norbert Wiener criou o termo "cibernética" para significar "teoria de controle e comunicação, seja na máquina ou no animal". Mas o uso da palavra “ciber” associada à internet, robozinhos e agora, inteligência artificial, vem do livro Neuromancer, de 1984 (olha aí a coincidência infeliz), escrito por William Gibson. Quem frequentou BBS, sonhava com um fax-modem 14.400 bps da US Robotics e teve e-mail com o final ac.apx.org sabe disso.

Mas para finalmente calar a minha boquinha de etimologista, o próprio William Gibson afirma que  escolheu o termo “cibernético” (e a partir dele cunhou “ciberespaço” e “cyberpunk”) porque achou que era um “really hot name” apenas. Apenas. A palavra “ciberespaço”, quando datilografada na máquina de escrever, parecia significar algo incrível, mas o maior deleite e ironia de Gibson era saber que ela não significava absolutamente nada para ele. Curiosamente, no livro de Timothy Leary há uma entrevista com o próprio William Gibson, feita 10 anos depois da publicação de Neuromancer. Lá pelas tantas, lê-se:

Timothy Leary: Você descreveria o ciberespaço como a matrix de todas as alucinações?

William Gibson: Sim! É uma alucinação consensual que essas pessoas criaram. É como se, com esse equipamento, você pudesse concordar em compartilhar as mesmas alucinações. Na prática, eles estão criando um mundo. Um mundo que não é realmente um lugar, não é realmente um espaço. É um espaço especulativo.

Sim, meu bem. Ele está falando do seu telefonezinho. Outro dia apareci na TV Cultura indicando o livro A máquina do caos, de Max Fisher (não confundir com Mark Fisher). Disse, mal articulando as palavras, que o livro explica e exemplifica os danos causados ao planeta pelo algoritmo das redes sociais. Da insônia pessoal e intransferível à ascensão de Bolsonaro e a metástase política que herdamos dela. E de fato estamos todos sofrendo, neste exato momento, de alguma forma, da “austeridade neoliberal” do “complexo internético” que promove “a continuada erosão da sociedade civil”. As aspas são do livro Terra arrasada, de Jonathan Crary. Este professor de Columbia, discípulo de Edward Said, diz coisas horrorosas e verdadeiras sobre a nossa total dependência em relação ao virtual. Leiam os dois livros. E leiam o Neuromancer.

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Escrito por

Mariano Marovatto
(Rio de Janeiro, 1982)

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