No último dia 25 de fevereiro foi aniversário de 70 anos da morte de Mário de Andrade. Na mesmíssima data, não por acaso, suponho, Eduardo Jardim estava autografando seu mais recente livro Eu sou trezentos – Mário de Andrade vida e obra – a primeira biografia sobre o maior polígrafo brasileiro do século XX.

Mário, na minha adolescência e nos anos de graduação, foi um herói pra mim. Mesmo ele atolado de cigarros, ternos, vida burocrática, culpa católica e São Paulo, pela quantidade de palavras que ele escrevia por dia – numa tentativa de acompanhar seu pensamento, que por sua vez, tentava domar o mundo, o Brasil e a arte – saltava o genioso monstro da cultura. Naquela época eu não assimilava um décimo do que ele dizia naquela velocidade de livros de contos, poemas, crônicas, romances e cartas, muitas cartas: uma saraivada de tapas na cara a potência criadora nonstop de Mário. Mas, mesmo me desnorteando, a obra dele era, e é, o marco zero, o meu lugar pra co- meçar a entender a literatura brasileira no século XX. Tipo entender o mapa da cidade de São Paulo a partir da Avenida Paulista. Ou o Rio de Janeiro a partir da orla marítima. Comecei a ler Oswald e Manuel por conta de Mário. Me apaixonei perdidamente pelos dois e pelos bastidores da Semana de 22. Pensar os três em conjunto, cada um, ao longo dos anos, colocando e tirando o corpo fora, oportunamente, numa dança de interesses éticos e estéticos, é o desenho perfeito do cerne do modernismo que me interessa. E sim, claro, depois vieram o grupo Verde de Minas e o modernismo caótico inexistente e latente do Rio de Janeiro, muito bem mapeado no livro de Mônica Velloso, que expandiram ainda mais a leitura da potência criadora desse período entreguerras tão lendário e tão caro pra todos nós.

O desdobramento do cismo que dividiu Oswald e Mário ainda é um dos pontos cruciais da vida e da obra geral da cultura brasileira. É ainda uma chaga aberta. Acho urgente abrir os arquivos e a memória e saber quantos socos foram desferidos, se foram desferidos, que comentários ferinos Oswald destruíram Mário. Acho urgente tirarmos Mário do armário de vez e desmontar um milhão de armadilhas construídas pela nossa “tradição” literária por conta desse imbróglio pessoal que velou uma série de leituras e oportunidades de potencializar Mário de uma forma transante jamais empreendida. Isso refletiria diretamente na divisão que, desde então criou-se entre a estética oswaldiana e a estética marioandradina ao longo do século XX e que acabou alicerçando algumas de nossas maiores verdades culturais. Acho que a destituição de Mário pelo Tropicalismo (com o aval do Concretismo, aquele trio de escritores que serviam como a internet da época) uma das maiores mancadas da nossa história. Entendo, claro, o jogo de poder inescapável condizente com a urgência e a explosão do projeto tropicalista. Oswald, mesmo morto, era o aval necessário para mandar as estruturas pelos ares. Oswald é gênio, é carnaval, é propulsor, é a ironia como São Paulo nunca tinha antes fabricado. Mas, hoje, 2015, num mundo atulhado de regras heteronormativas essenciais para o nascimento dos micro e macro fascismos diários que assistimos a cada dia, enxergo muito um lado nocivo da árvore genealógica do homem do Pau Brasil. Penso que se não fosse a libido de Caetano e Zé Celso, Oswald seria o aval pleno do machismo e do racismo que, vez em quando, pulula da Bossa Nova, que por sua vez se desdobra em algumas personalidades do Pasquim, e que desaguou em um tanto de coisas da "inteligência" brasileira de agora. Tudo por uma sucessão de erros. Tudo por uma questão de bipolaridade estética. Tudo por conta de um desentendimento entre Mário e Oswald, cujo barraco ninguém quis me contar durante os 12 anos que estudei literatura.

Depois desse desabafo que me aparece vez em quando como um soluço de bêbado, gostaria de dizer que comecei essa crônica por outro motivo. No livro de Eduardo Jardim, surge, antes de 22, a presença de Anita Malfatti na vida de Mário de Andrade. Sempre achei Anita tão feia e tão bonita como a Emily Dickinson. Diferentemente de Emily, Anita saiu de seu quarto muitas vezes, viajou pra Europa, estudou e pintou furiosamente – principalmente na década de 10 do século passado. Me tocou profundamente pensar que a história do modernismo paulista começou com os quadros dela sendo vistos pelo boquiaberto e jovem Mário. E que Anita, um tanto quanto insegura como Emily, desabou completamente depois da crítica feroz de Monteiro Lobato (que também pode ser alinhado com esse perfil possível da Bossa Nova e do Pasquim que citei no parágrafo acima) e nunca mais pintou do jeito que pintava. Mário, delicado e preciso, defendeu a amiga e, junto com Oswald, a partir do famoso artigo de Lobato, criou forças para levantar a Semana e logo em seguida a revista Klaxon. Anita, desconsolada, apaixonou-se por Mário, o amigo gay. Mário cortou um dobrado pra não deixar Anita ainda pior, reafirmando a amizade entre os dois e o talento extraordinário da pintora. E agora, passo as tardes pensando nesses dois casais modernistas: os carnudos, verborrágicos e porradeiros Oswald e Tarsila, que de fato casaram, brigaram e se largaram, e Mário e Anita, desengonçados, certeiros e polidos, sofrendo cada um com a sua sina particular, e ainda assim, companheiros. Fico aguardando que alguém me conte essa história do Brasil.

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Escrito por

Mariano Marovatto
(Rio de Janeiro, 1982)

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