Em 1967, Cacaso tinha 23 anos, um livro publicado por uma editora, uma canção gravada por Elizeth Cardoso e um diploma de filósofo. Era amigo da dupla Paulinho da Viola e Elton Medeiros, fã de Chico Buarque (poucos meses mais moço do que ele) e parceiro de Hermínio Bello de Carvalho. Na poesia, seu mentor era José Guilherme Merquior, que o ajudou a montar as peças de A palavra cerzida, seu livro de estreia. Tudo parecia nos trilhos na vida do jovem adulto Antonio Carlos de Brito.

Mas, num belo domingo como esse, Cacaso resolveu ler a coluna José Lino Grunewald no Correio da manhã. Chapou. Achou incrível a argumentação do crítico que misturava cibernética, teoria dos signos, fenomenologia, Max Bense, Ezra Pound e a Poesia Concreta. Espantado, foi atrás dos Irmãos Campos. Impressionou-se pela teoria de Augusto e Haroldo. Quieto no seu cantinho, Cacaso começou a ler poemas concretos. Havia ali alguma coisa que o instigava. Tomou coragem e escreveu para Merquior, que vivia em Paris, sobre a sua descoberta. Se o caso era ouvir alguma coisa proveitosa sobre os Concretos, Cacaso inocentemente escreveu para a pessoa errada. A partir dessa carta, a guinada de Cacaso à vanguarda poética que poderia ter existido, deixou de acontecer para todo o sempre.

Horrorizado, o crítico, inimigo teórico dos irmãos Campos e de Pignatari, respondeu ao amigo quatro páginas devastadoras sobre o Concretismo. Cacaso leu atentamente. Parece que o poeta respondeu longamente ao crítico, o problema é que não se sabe o que. A carta perdeu-se em algum escaninho da história. Meses depois, Antonio Carlos foi para São Paulo ver a montagem do Rei da vela de Zé Celso. “É de uma ferocidade inaudita, uma das melhores coisas que já vi em teatro”. Naquela altura, com a repercussão zero de A palavra cerzida, Cacaso já havia resolvido largar a poesia. Achava também que a música popular começava a perder a sua inteligibilidade por falta de suporte crítico. Queria escrever sobre música, queria intervir no seu tempo de alguma forma. O Teatro Oficina o deixou desbaratinado. 

Acredito que o sermão de Merquior tenha arrancado pela raiz uma potência diferente, estranha ao mundo de Cacaso, mas que poderia ter o levado para outras paragens. Sem meios para seguir por este caminho, o poeta se recompôs aos poucos. Retomou os versos alguns anos depois, fazendo pouco caso dos concretos: “um trio bem informado / dado é a palavra dado / E foi assim que a poesia / deu lugar à tautologia / e ao elogio à coisa dada) / em sutil lance de dados: se o triângulo é concreto / já sabemos: tem 3 lados”. Não tardou muito e finalmente tomou as rédeas do esquema "marginal” de poesia, doutrina que acabou levando para a posteridade.

No arquivo de Cacaso procurei algumas pistas, estilhaços, brechas, desse efêmero interesse pelo “paideuma” da vanguarda brasileira dos anos 1960. Só restaram as críticas. Um dia, pondo suas fitas cassete em ordem, encontrei a que dizia “Cacaso e Djavan”. Pus pra tocar. Não vinha nenhum ruído natural de fita velha, nem vozes, nem murmúrios nem violões,  nada que lembrasse “Lambada de serpente”. A fita, de alguma forma, infelizmente havia sido desmagnetizada pelo tempo, mas dela se ouvia barulhos totalmente inesperados. Estampidos, vórtices graves, sons craquelados, ondas agudas. Silêncios. O tempo cuidou que Cacaso compusesse (em parceria com Djavan) uma peça eletroacústica de meia hora (cada lado da fita). Algo que John Cage poderia ter bolado com uma pequena parafernália utilizando do acaso como método de trabalho. Pensei na mesma hora no livro Música de invenção de Augusto de Campos e achei graça de tudo. Alguns meses depois, ainda no arquivo do poeta, deparei-me com uma pasta repleta de papéis tamanho ofício amarelados pelo tempo, totalmente em branco. Por acaso, o poeta guardou aquelas folhas e nunca as usou. Não fez nelas qualquer desenho, letra de música, esboço de ideias, nada. Convenci-me de que ali era o lugar reservado - novamente pelo acaso - para que ele um dia tomasse finalmente notas sobre a poesia concreta, teoria dos signos ou cibernética. Ou então, eram essas as folhas da partitura de sua peça musical com Djavan. Dessa forma, me dei por satisfeito e concluí a minha busca por esse Cacaso que nunca existiu.


Acaba de sair pela Companhia da Letras, a Poesia completa de Cacaso. Contribuí com um texto sobre o autor, ao final do livro. Em paralelo e de graça, a editora disponibilizou uma breve coletânea de contos de Cacaso (quase todos inéditos), chamada Doutor Caneta, fruto da minha pesquisa no arquivo do poeta. Por fim, para quem quiser saber mais sobre a trajetória de Cacaso, há o meu livro/tese Inclusive, aliás, publicado pela Editora 7Letras

Beijos e até a próxima.

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Escrito por

Mariano Marovatto
(Rio de Janeiro, 1982)

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