O mundo invisível

Troquei o logotipo da newsletter. Antes era um “m”, agora é uma boa, velha e esperançosa estrela vermelha. Portar uma estrela vermelha nessa altura dos acontecimentos, se não é mais revolucionário, que seja pelo menos carnavalesco e absurdo. Estamos no mês, no signo, sob a constelação, sob o efeito de, influenciados e tramados por estas duas palavras: carnavalesco e absurdo. O Rio de Janeiro, como sempre o faz nos verões de início de ano, é sístole e diástole, traduzindo para as ruas: derretimento e sacolejo. Os corpos ou estão grudados no chão, como a sujeira deixada pelas castanhas de fevereiro em queda livre sobre as pedras portuguesas, ou exercendo o seu absurdo, sempre um pouco acima do solo, como os fantasmas das mouras fatais que assombravam os homens católicos dos castelos portugueses. Nas telinhas, o nazifascismo nos chega sincerão, aberto, sem o costumeiro disfarce e mesura. Acabaram as metáforas do mal. O bem, no entanto, vive de metáforas. Acha que só pode encantar o mundo através das metáforas.
Seguindo este estranho fluxo, preciso dizer que li dois livros igualmente impactantes. Nenhum deles é novo. Nem velho. Luiz Antonio Simas em Umbandas - uma história do Brasil, fala da obstinação brasileira de manter a “encantaria” como uma substância in medias res eterna, isto é: as estradas da encruzilhada parece que não tiveram início e não terão um final. “A conexão entre os vivos e os mortos”, sua “interação profunda com o ambiente”, e a “ritualização dos corpos” resistem “ao tempo e espaço”, apesar da dor. É como o eterno e mui citado samba de Beto Sem Braço.
O outro livro fala de outra coisa que é quase a mesma. Svetlana Aleksiévtich e seu Vozes de Tchernóbil, dá, como diz o título, voz aos efeitos do invisível radioativo sobre o destino dos bielorrussos. Tchernóbil acabou se tornando uma zona cuja substância escancarou o modo de lidar com o incorpóreo e com o mistério: “lá você cai imediatamente num mundo fantástico, numa realidade que congrega o fim do mundo e a idade da pedra”, diz um dos personagens reais do livro. Eu já tive uma relação bastante traumática com a religião, o “pensamento mágico” e com a mediunidade. O que esse bielorusso diz é exatamente o que sinto em relação ao que está fora da realidade. De um jeito bastante negativo. Uma outra vítima de Tchernóbil me ajuda a explicar: “O mecanismo do mal seguirá funcionando no Apocalipse. Isso eu entendi. As pessoas continuarão bisbilhotando e adulando os seus chefes para salvar a sua televisão e o seu casaco de pele. E no fim do mundo, o homem será o mesmo que é agora. Sempre.” O homem é ruim mesmo diante do fantástico e do inédito. A teofania pode ser individual, mas seu hipocampo de destruição é sempre enorme. Depois o ser humano entende como se lida e a seguir tira o seu proveito. A “exofania” também não sossegará o ser humano: nem o alienígena, nem o meteoro poderiam mudar alguma coisa. Indivíduos e congregações que articulam chantagens sobrenaturais em troca de dinheiro, abusando psicologicamente de suas vítimas, se proliferarão à medida em que a população vai se percebendo sem saída.
Acho que perdi o fio da meada, me perdoem. Eu tinha receio da fronteira turva entre psicose e mediunidade. A realidade impossível pode se tornar bastante possível, quem viveu Tchernóbil sabe e, por isso, odeia ficção científica e deve achar Lovecraft um estadunidense tosco. Sou ateu, ou melhor (ou pior), antiteísta e acho o cérebro humano o maior mistério, o maior barato. Resolvi escarafunchar na internet e encontrei um artigo que me ajudou bastante após a leitura acachapante de Svetlana e de Simas, chama-se: “Diagnóstico diferencial entre experiências espirituais e psicóticas não patológicas e transtornos mentais: uma contribuição de estudos latino-americanos para o CID-11”, de Alexander Moreira-Almeida e Etzel Cardeña. O artigo está em inglês, mas, segundo seu próprio resumo em português, afirma que: “Embora as experiências espirituais não estejam habitualmente relacionadas a transtornos mentais, elas podem causar sofrimento transitório e são frequentemente relatadas por pacientes psicóticos. Conclusão: Propomos algumas características que sugerem a natureza não patológica de uma dada experiência espiritual: ausência de sofrimento, de prejuízo funcional ou ocupacional, compatibilidade com o contexto cultural do paciente, aceitação da experiência por outros, ausência de comorbidades psiquiátricas, controle sobre a experiência e crescimento pessoal ao longo do tempo.”
Me acalmei. Ou como disse o paciente psicótico da grande Neusa Santos Souza: “agora posso sofrer tranquilo”. Entendi que as Umbandas de Simas, promovem não só este alicerce incontornável da cultura brasileira, que é a umbanda, mas também o bem estar da nossa psicose coletiva. E que sua perseguição pela unívoca igreja desde os seus múltiplos nascimentos em terras brasileiras, acabaram por fortalecer suas intenções comunais, o cuidado com os renegados e rejeitados e, por fim, um protagonismo crítico importante na história dos derrotados do Brasil. Afinal, o que é mais vivo, propositivo e palpável: Seu Sete da Lira dando a letra diretamente do mundo dos mortos ao vivo no programa do Chacrinha e do Flávio Cavalcanti, ou a invocação de um deus inclemente e indestrutível, inventado no oriente-médio há milhares de anos por teofanistas que jamais souberam ou previram o que viria a ser a psiquê cultural diaspórica do Brasil ou a catástrofe radioativa infinita de Tchernóbil? Uma vez Philip K Dick sofreu uma teofania. Uma longa história, outro dia eu conto. A coisa é que ele começou a escrever um diário que ele resolveu chamar de Exegese. Lá pelas tantas, nas suas anotações, ele escreve que “um vestígio de irracionalidade permeava todo o universo”, inclusive deus. É uma citação de Platão que, em vez de “universo”, dizia que o vestígio de irracionalidade estava na Alma do Mundo. Dick afirmava que essa irracionalidade era fruto de perdas e tristezas sofridas pela grande Mente Definitiva que está por trás de tudo, inclusive de deus. Bom, cada um espelha a si na grande Mente Definitiva, poderia dizer doutor Sigmund Freud. Mas, se fosse eu astrônomo (astrólogo não), buscaria pelos confins do universo e catalogaria seus vestígios de irracionalidade que estão por aí à espreita. Quando não se tem a solução, a melhor solução é sempre catalogar. Aprendi nos arquivos.
Por fim, sugiro que quem queira emitir opinião sobre o mundo invisível que antes adicione Umbandas e Vozes de Tchernóbil à sua bibliografia. Bom carnaval, se cuidem. Não fritem e não se deixem fritar. Ao meio-dia escaldante encontrarei vocês pelas ruas do Centro do Rio de Janeiro vestido de demônio.