Então acabou. Quer dizer, ainda não acabou. Existe uma crônica do Machado de Assis na qual, nos estertores do século XIX, ele arremata da seguinte forma: “compreenderás [cara leitora,] que [este já] é um século esfalfado.” Eis o adjetivo formidável para 2024. Esfalfado. Antes, por conta desse esgotamento, eu tinha listado as voragens do ano, assim como Machado na sua crônica havia enumerado as contingências da fadiga do seu século. Mas o meu texto vinha acumulando desgostos, amarguras, desprazeres, pesares, desconsolos, consternações, angústias, até que uma hora esfalfou-se. Decidiu, como o querido leão marinho Joca na praia de Ipanema, na semana anterior ao Natal, desistir - só por um pouquinho - em retomar o ânimo. Put it there, if it weights a ton, já cantava o bardo inglês. Não desprezo as tristezas, as reviravoltas, as frustrações, o luto, e principalmente, enfrentar o bafejo da morte. Mas vamos sentar um pouquinho aqui, por agora. Trouxe esse outro papelzinho no bolso. É bobeira, talvez seja útil. É uma lista de outras coisas de 2024. Coisas que li, vi e ouvi e que foram se tornando importantes nos últimos doze meses. Por exemplo:

Malu existe. Que me desculpe a Fernanda Torres, mas Malu, de Pedro Freire, é o melhor filme brasileiro do ano. O melhor filme brasileiro vivo. O maior do século em que estamos, até agora. Yara de Novaes, Juliana Carneiro da Cunha e Carol Duarte são unânimes, complementares, indivisíveis. São modos de uma mesma substância familiar concebida e orquestrada pelo Pedro Freire. Exemplo de direção, exemplo de atuação. Catarse para o público. Nada é indiferente a Malu. Soberano. Estupendo. História.

É mais fácil imaginar o fim do capitalismo do que o fim da ironia. Kierkegaard, que nunca li à sério, disse que “não é possível a vida humana autêntica sem a ironia.” A ênfase é minha. Tudo o que é verbal, é irônico. Harold Bloom, pegando mais pesado, afirma que “toda ironia ocidental é uma repetição dos enigmas/charadas de Jesus, [que por sua vez é] um amálgama das ironias de Sócrates”. Com ou sem bazófia, ou melhor, em nome dela, afirmo que o Zumbi do Mato e seu novo disco, Bosasova Bova, é descendente direto dessa linhagem. Não à toa, desde 1989, eles são a melhor banda de rock carioca. Talvez o Planet Hemp seja comparável, mas pecam pela instabilidade. O Zumbi é consciente de seu ofício. O disco é um alento aqui em Copacabana. E digo mais: o melhor show/concerto que assisti em 2024 foi o de lançamento do Bosasova Bova, no Garage. Estar entre pessoas que da mesma forma sabem de cor as letras e todas as blue notes de Lois Lancaster é, paradoxalmente, o congraçamento mais profundo entre os que compartilham, em algum grau amoroso, da razão cética. Digo paradoxalmente porque tal razão, além de cética, é bastante subjetiva e solitária. Como ler um romance.

Em matéria de prosa, não fui up-to-date. Peço desculpa aos ficcionistas que lançaram livro esse ano. Li principalmente prosadoras esse ano. Cassandra Rios, Annie Ernaux, Mary Shelley (também pela primeira vez), e desenvolvi uma adição ainda maior pela Fernanda Botelho. É uma obsessão de anos. Em 2024 li, não um nem dois, mas três romances dessa senhora nascida no Porto em 1926. A gata e a fábula, é bom, é minhoto, ganhou prêmio em 1960 e tudo. Mas a pequena e urbana Lisboa brilha nas tascas, nos cigarros, nos automóveis, nos telefones, nos apartamentos, na sala das datilógrafas, nos adultérios, nos delírios, nos livros dentro dos livros Terra sem música Essa noite sonhei com Brueghel. Dentre esses dois, é difícil escolher o predileto por ora. Brueghel é mais maduro, mais sintético, mais rabugento, e dá conta do aspecto culinário da vida lisboeta como nenhum outro livro. Mas é em Terra sem música que Botelho assume pela primeira vez a sua própria versão de razão cética. Uma ironia substanciosa composta ao longo do famoso ano de 1968, enquanto Portugal permanecia à deriva do surto revolucionário do ocidente.

Em não-ficção, indico dois livros que considero imprescindíveis para continuarmos vivos nos próximos anos: A máquina do caos - como as redes sociais reprogramaram nossa mente e nosso mundo, de Max Fisher, múltiplas vezes citados nesta newsletter, e Gente ultraprocessada - por que comemos coisas que não são comida, e por que não conseguimos parar de comê-lasde Chris van Tulleken. Curiosamente, os dois livros foram escritos por dois liberais anglófonos, logo eles não apontam culpados de uma forma objetiva. Mas nos enchem de fatos, informações, números e testemunhas o suficiente para, dali por diante, deduzirmos o que fazer, como lutar e como sobreviver.

E a poesia? Li muito pouco e escrevi quase nada. O violão devo ter tocado umas quatro vezes esse ano. Sintomático. Porém, mais para fleumático do que para melancólico. Fazendo jus a essa desleitura, no segundo semestre publicaram um livro de poemas que vai me acompanhar para o resto da vida. Espero que acompanhe vocês também: Não sou poeta, do Victor Heringer.

Para terminar, indico mais filmes. Gostei muito de assistir em casa, pela primeira vez: Liquid Sky (Slava Tsukerman, 1982), Welt am Draht (Rainer Werner Fassbinder, 1973), The Old Dark House (James Whale, 1932), On The Bowery (Lionel Rogosin, 1956) e alguns outros. Mas agora chega. Até o ano que vem. E lembrem-se: Do not go gentle into that good night.

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Escrito por

Mariano Marovatto
(Rio de Janeiro, 1982)

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