Outro dia de tarde fui comer um joelho: o melhor de Copacabana, dizem os terríveis influencers juvenis. Ao meu lado no balcão um turista estadunidense tomava açaí. Ele perguntou em inglês para mim: “Esse salgado é de que?”. “Ham and cheese”, respondi prontamente e perguntei: “Where are you from?”. Ele respondeu feliz dando sua última colherada na cumbuca: “I’m from Texas!”. Olha, eu fico possesso quando um estadunidense responde o estado em que nasceu e não o país. E se alguém chegasse lá e dissesse “I’m from Mato Grosso do Sul”? Que trabalheira que ia dar. Eles não estão nem aí para a Hora do Brasil. Mas fico mais possesso não porque o estadunidense se sente à vontade em qualquer recanto escondido do planeta Terra para responder feliz que veio do Texas. Não. Eu fico possesso (“me da una bronca”, como corretamente diriam os argentinos) porque todo mundo sabe o que é o Texas. Enquanto ruminava nisso, perguntei, meio sem querer, letárgico, mas de bate pronto: “E como vai o nosso grande Império?”. Ele ficou ressabiado: “Império?”, “Sim, o nosso Império dos Estados Unidos da América. Como estão as coisas por lá?”. O gringo ficou meio puto. “Mas não é um império. É um país que vive numa democracia, apenas.” Respondi: “Meu amigo, se não fosse um império, nós não estaríamos aqui em Copacabana falando em inglês e você teria que me explicar o que é o Texas. Eu sei tudo do seu país desde criança e nem tinha ido lá. O que você sabia do Brasil quando era criança?” E a conversa foi assim, assim, esmorecendo, em fade out, junto com a alegria ingênua do sujeito até a hora dele pagar e ir embora, trinta segundos depois.

Em 1990, outro estadunidense, chamado Joseph Nye, definiu soft power como “a capacidade de obter o que se deseja por meio da atração, e não da coerção ou de pagamentos”. O nome disso é “indústria cultural”, ou, mais belicosamente, “arsenal de entretenimento”. Os termos todos vieram praticamente um século depois do início de suas práticas. E significam o resultado da coação psíquica pelo uso da cultura popular como ferramenta de poder simbólico — sobretudo em áreas como cinema, streaming, video games, publicidade e redes sociais —, integradas às agendas de política externa e de segurança dos EUA. Não sejamos tolos ao pensar que existe uma diferença enorme entre a Walt Disney Company e a Lockheed Martin só porque a Disney produziu Andor, a série socialista do Guerra nas Estrelas. Essas moças são siamesas e foram separadas ao nascimento. Elas sorriem igual e sabem pilotar um F-35 com a mesma maestria. O que me impressiona mais, não é a estratégia monstruosa do soft power e o seu arsenal de entretenimento martelando em nossos cérebros há um século. O que me impressiona é essa autoconfiança, esse auto-engano em se achar, literalmente, a última Coca-Cola do deserto. Afinal, por que raios eu vou querer uma Coca-Cola no deserto? Até a ideia de que Coca-Cola é mais importante do que água eles incutiram na cultura mundial. Eu queria era um oásis com água potável no meio do deserto — o que é perfeitamente plausível.

Pelo que eu percebo, tudo começou com uma questão de recalque intelectual criado durante a adolescência da nação estadunidense. Algo muito similar aos rapazes fortinhos dos high schools norte-americanos que fazem bullying no restante da escola. Enquanto os EUA crescia em inovação tecnológica, produção industrial e expansão territorial, a vida cultural americana era vista como fragmentada, provinciana, excessivamente utilitarista e desprovida de profundidade simbólica, aos olhos da vovó europeia e das jovens nações latino-americanas.

Tocqueville já dizia isso em 1835, em Democracy in America: "As artes são cultivadas [nos EUA] como meios de ganho e não como expressão da alma de um povo." Um outro rapaz norueguês, chamado Thorstein Veblen, escreveu em The Theory of the Leisure Class (1899) que "a cultura americana não é erudita nem popular: é um ritual de ostentação vazia." Os bullies tinham a faca e o queijo na mão, mas não sabiam degustar o singelo queijinho. Sofriam bullying. Então resolveram fazer um Columbine mass shooting em escala totalmente desproporcional.

Nos anos 1930 e 1940, figuras como Franklin D. Roosevelt, Nelson Rockefeller e Walt Disney passam a compreender essa crise cultural como um problema estratégico e diplomático. Surge então o OIAA (Office of the Coordinator of Inter-American Affairs), não apenas como propaganda de guerra, mas como plano de redenção simbólica dos EUA. É aí que Hollywood é instrumentalizada como veículo-mor de consagração cultural e civilizacional. A cultura popular começa a ser moldada para mostrar os EUA como modernos, livres e carismáticos. O soft power é, portanto, um contra-ataque à humilhação cultural fundante daquele país. Dois alemães do barulho, vivendo no exílio do pós-guerra em Nova York, sacaram a jogada e arremataram: “A indústria cultural [Kulturindustrie] confere à cultura o status de bem de consumo. Os filmes, o rádio e as revistas constituem um sistema. Cada ramo é uniformizado e todos se entrelaçam.” (Adorno & Horkheimer, Dialética do esclarecimento, 1947).

E assim começou a história de como passamos a gostar muito de filmes de guerra e canções de amor, como diriam os Engenheiros do Hawaii. Ou, se preferirem, how we learned to stop worrying and love the bomb, como diria Stanley Kubrick. O Brasil foi alvo prioritário do OIAA, com o estabelecimento da parceria entre Getúlio Vargas e Rockefeller e a política da boa vizinhança. Carmen Miranda foi para os Estados Unidos. Em pouco tempo, e não por acaso, o nosso carnaval se transformou no maior espetáculo tropical do mundo. Décadas depois, foram as novelas que exportamos até hoje que moldaram a imagem do Brasil no exterior (enquanto o cinema popular era reprimido e o cinema novo, marginalizado, durante a ditadura militar). A TV Globo então é criada e transformada em veículo emocional e moral da nação, sob os moldes do arsenal do entretenimento estadunidense. E através dela assistimos mil vezes Top Gun, Rambo, Robocop, Porky’s e Guerra nas Estrelas, ponto que quero retomar.

Um CEO da Lockheed disse outro dia que a Skunk Works está hoje em dia mais próxima do mundo de Star Wars do que de Top Gun. Bacana. Skunk Works é uma divisão criada em 1943, dentro da Lockheed, a pedido urgente do governo dos Estados Unidos para desenvolver um caça a jato para enfrentar os avanços da Luftwaffe durante a Segunda Guerra. Fizeram lá o avião em 140 dias. Os anos passaram e, em 2012, a Disney adquiriu a franquia de George Lucas. Em 2018, numa matéria oficial de sua página institucional, a Lockheed descreveu a semelhança entre suas tecnologias espaciais e algumas presentes em Star Wars, dizendo: “Aqui estão cinco tecnologias de Star Wars que apresentam semelhanças impressionantes com o que estamos desenvolvendo no espaço atualmente.” Embora não especifique encontros com George Lucas lui-même, a empresa que fabrica armas para Israel, fala abertamente em “inspiração mútua” entre os conceitos ficcionais e tecnologias emergentes. Por exemplo, os simuladores de voo e realidade virtual usados por pilotos militares foram adaptados a partir de tecnologias de parques temáticos do Star Wars na Disney. A ficção antecipa e retroalimenta o imaginário da guerra. Mas não estamos falando apenas de armas militares e interestelares. Elon Musk e suas tranqueiras, Mark Zuckerberg e suas redes, e Sam Altman, vulgo Chat GPT, representam o novo momento de um soft power automatizado, transnacional e mais inteligente. Musk une engenharia, conquista espacial e nazi-misticismo libertário. A Meta controla o fluxo global de afetos (queria usar outra palavra, mas não deu), vícios, verdades e ficções. Parece mentira, mas Mark criou de fato essa máquina de modulação emocional planetária, responsável pelas bolhas epistêmicas (como essa) e todo tipo de guerra memética. Por fim, o Chat GPT representa a nova face do poder simbólico: a automação da linguagem, do saber e da persuasão. Ele não apenas informa, mas está escrevendo o mundo, colaborando em todo tipo de texto — de storytelling político a imaginários ficcionais.

Juntas, essas forças não apenas ampliam o império simbólico norte-americano: elas o tornam autossustentável, descentralizado e inseparável de suas interfaces. O soft power agora opera na escala da linguagem, isto é, dentro de nossas cabeças. Um abraço pro meu amigo texano.

Pra terminar, como diria um herói estadunidense: “Just because you're paranoid don't mean they're not after you”.

(Nessa mesma letra do Kurt Cobain tem outros versos igualmente emblemáticos e úteis ao nosso textinho de hoje, como: “When I was an alien, cultures weren't opinions” e “Never met a wise man If so, it's a woman.”).

Mas e agora? Quem poderá nos defender?

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Escrito por

Mariano Marovatto
(Rio de Janeiro, 1982)

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