Sou ateu

Há dez anos venho ensaiando essa admissão intimamente, mas foi agora, em 2015, por conta do concerto diário das deficiências do mundo lá fora, que decidi veementemente pela minha radicalidade no ateísmo. As coisas não andam bem, nós sabemos, mas quero apontar alguns dos fatos.
O senhor primeiro-ministro húngaro, afirmou – mesmo diante da fotografia, do corpo do menino sírio morto tragado pelas ondas de uma praia turca, que abalou o mundo – que “a imigração vai destruir a identidade cristã da Europa”. Pois bem, Cristo era historicamente judeu e viveu na Palestina, bem longe dessa identidade cristã que esse senhor pretende salvar. O povo húngaro veio da Ásia Central e foi, outrora, inimigo mortal dessa mesma Europa cristã. O fascismo de um líder estúpido gera mais barbárie e a barbárie leva ao desconcerto cognitivo de cada indivíduo. Tanto o indivíduo, representado pelos dois milhões de seres humanos que fogem da Síria, quanto o líder fascista (seja ele qual for), foram motivados por uma crença religiosa para estarem nestes dois pólos opostos da civilização: o do opressor e o do oprimido. A guerra na Síria, é preciso também recobrar, começou com um propósito religioso: os sunitas, apoiando-se na Primavera Árabe, lá em março de 2011, pretendiam derrubar o governo de Bashar al-Assad, da minoria étnico-religiosa alauíta. Aqui no Brasil não vejo a separação entre os números que atestam que no ano passado 140 milhões de brasileiros não abriram um livro sequer – a avassaladora maioria dos que abriram, abriram somente a Bíblia sob os olhos interessados de pastores e padres que, por sua vez, interpretam ao seu modo o que diz o Novo e o Velho Testamento – e o crescimento da po- pulação cristã brasileira, que dobrou de 26 milhões para 52 milhões, nos últimos 14 anos. Não por acaso, elegemos um congresso que possui uma canhestra e poderosa bancada religiosa, apoiada por ruralistas e empresários milionários, que sabe muito bem que quanto menos instrução, maior é o medo, maior é o desconcerto cognitivo de um indivíduo, e mais facil- mente ele é manobrável socialmente. Todas as reivindicações feministas são rechaçadas por estes homens porque a Bíblia foi modelada por uma sociedade patriarcal, sexista, misógina, que vivia num deserto muito distante da realidade natural do Brasil, milênios atrás. Do mesmo modo que são igualmente anuladas as urgentes causas LGBTs, o exercício de religiões não-cristãs (e falo da prática cultural religiosa afrodescendente, porque afinal de contas, Jesus é branco de olhos claros como nos foi ensinado em todas as suas representações plásticas) e o frágil direito à sobrevivência dos índios (exterminados como se não fossem humanos: a cada 100 índios mortos, 40 são crianças com idade igual ou inferior ao menino sírio). Se todas as minorias são vítimas da religião, logo toda a sociedade é vítima da religião.
Ser ateu é um posicionamento filosófico, político e ideológico muito fora da curva. Segundo dados de uma reportagem de 2013, somos 0,4% do total da população brasileira. O medo promovido pelo fascismo religioso, patrocinado e televisionado, transformou a opção pela absoluta falta de crença na menor das minorias do país. Sim. Uma outra pesquisa, de 2007, afirmava que cerca de 84% dos brasileiros votariam em um negro para presidente; 57%, em uma mulher; 32%, em um homossexual e apenas 13%, em um ateu. No Brasil de hoje, um ateu pode ser quase associado a um criminoso, de-pendendo do nível de alienação incutido na cultura religiosa de um indivíduo.
Eu sou um ateu radical. O que isso significa? Significa que numa escala 1 a 7, desenvolvida pelo cientista Richard Dawkins – na qual 1 representa um teísta que não segue nenhuma religião, mas que acredita na probabilidade de 100% da exis- tência de deus, e 7, um ateu, convicto 100% da inexistência de deus –, eu estou no número 7. Ou seja, respeito e acredito na veracidade do testemunho religioso de alguém na mesma medida que acredito na veracidade da afirmação dessa pessoa quando ela diz que sua “esposa/marido é linda/o e seus filhos são inteligentíssimos”. Significa que não creio em deus na mesma medida que não creio em unicórnio, reencarnação, espí- ritos, superstições, fadas, astrologia, tarô, Papai Noel, quiroman- cia, telepatia, o que for. É quase como a canção “God” de John Lennon, com a diferença de que também não acredito na Yoko Ono, ao contrário do que John afirma (e acredita) na letra. Significa, principalmente, que não preencho as lacunas do meu pensamento, sejam elas alegres ou angustiantes, com qualquer explicação divina, mágica, extrassensorial ou com qualquer outro sinônimo da palavra mistério. Significa que repulso o mis- tério e sempre escolho a compreensão dos fatos e a compre- ensão entre as pessoas, respeitando suas subjetividades. Apostar no mistério é muitíssimo perigoso e não tem nada de poético (porque também acredito que poesia não é mistério algum, não é auto-ajuda, não é necessariamente reconfortante, muito menos precisa ser um trava-língua mágico. Mas falemos sobre isso numa outra ocasião). Se as coisas andam muito complicadas é porque é sim muito fácil tirar proveito do poder que o mistério, o desconhecido, exerce sobre as pessoas que acreditam nele. Ser ateu é observar minuciosamente, é buscar o entendimento dos fatos até a exaustão, é buscar o entendimento no outro, também até a exaustão. Não nos deixemos exaurir, por gentileza. Era isso o que eu precisava dizer agora.