Trump

Os Estados Unidos, pelo voto, decidiram romper com o seu passado. Começo essa cartinha extraordinária de hoje parafraseando o analista político da Al-Jazeera, Marwan Bishara, antissionista nascido em Nazaré. Pelo voto democrático os Estados Unidos estão nesse exato momento atingindo um turning point inédito, rompendo com o seu passado liberal. Pois bem, vejam. Educadamente falando, a agenda de Trump é ultranacionalista e anti-liberal “de todas as maneiras possíveis”, conforme diz Bishara. Os vastos grotões dos EUA profundo que o reelegeram, rejeitam abertamente a “democracia liberal” como conhecemos, criada, organizada e executada há centenas de anos pela Costa Leste e Oeste daquele país sem nome. Bishara é certeiro: “Califórnia e Nova York não mais serão o establishment político dos Estados Unidos”. O modelo que todo o Ocidente amava (ou era obrigado a) seguir e reproduzir está implodindo agora. (Note que por duas vezes nesse século, a implosão foi adiada: em 11 de setembro de 2001, naturalmente, e em 2008, quando o simpático neoliberalismo salvou os bancos e não os correntistas. Hoje não rolou.)
Hoje a soberba da elite liberal estadunidense caiu em si. Descobriram o que nós, brasileiros arrogantes de esquerda, já sabemos desde 2016: que o enorme ressentimento dos grotões conservadores alimenta a sua própria resistência (ou resiliência, no vocabulário coach). Curiosamente, horas antes de Donald Trump ser reeleito, assistimos eu e Anna, o novo filme de Francis Ford Coppola, Megalopolis. Um horror. Se Kamala Harris fosse eleita, o filme seria esdrúxulo da seguinte forma: uma cópia kitsch adorniana de Baz Luhrmann de baixo orçamento misturado à megalomania reacionária de Ridley Scott, mas uma megalomania simpaticíssima. Ex-Poderoso Chefão, Coppola é um diretor, homem pálido, grisalho, idoso e poderoso, realizando teimosamente um filme vergonhoso que custou 120 milhões de dólares, e que se somente tivesse sido feito em 1996, teria tido alguma relevância cultural. Mas com a reeleição de Trump, Megalopolis transformou-se num awkward canto do cisne dessa soberba elite cultural liberal estadunidense que quer ensinar ao mundo como se portar. (Spoiler: na fantasia redentora de Coppola, temos que confiar na generosidade e na inteligência dos bilionários. Eles vão salvar o mundo e nos fazer felizes.) O século XX morre sem parar. Coppola é um suquinho concentrado de século XX que não sabe se portar no século XXI. Coppola vai também desaparecer, engolido pelo algoritmo final. Mas, quem sou eu pra julgar. Nasci também no século XX e nem crítico de cinema eu sou.
Já aqui no meu esquizo-algoritmo das redes de hoje, surgiram frases sugestivas sobre o fim do mundo as we know it (and I feel fine). Aglutinando algumas delas, organizei e meditei o seguinte: O fascismo, geralmente, chega ao poder através de eleições (ou outros métodos) democráticas. Mas nenhuma eleição democrática derrotou de fato o fascismo. (Isto era papel das guerras e das revoluções.) No entanto, com Trump reafirmando o seu poder (para o horror da Europa idosa e vaidosa), o mundo dá o seu passo mais largo rumo a uma nova ordem multipolar. E a democracia liberal acaba de ganhar o seu ferimento mais profundo. Virá destes dois elementos a chave real de leitura do catastrofismo em que vivemos. Enquanto o colapso climático se aproxima cada vez mais rápido, o século XXI não cansa de se reiniciar.