Ursula K. Le Guin

Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena –, Mariano Marovatto indica dois poemas de Ursula K. Le Guin. A curadoria é de Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário da poeta abaixo.
Não tenho lido poemas na quarentena, confesso. Nem escrito. Tenho mantido diários sobre diversos assuntos e conseguido trabalhar, de forma modesta, em casa. Aqui fazemos ioga diariamente, coisa que nunca havia acontecido antes, e cozinhamos todos os dias. Leio jornais abstrusos, baixei um aplicativo que é um quizz sobre praticamente tudo, no qual podemos jogar contra qualquer outra pessoa do planeta, aleatoriamente. Tenho lido muita coisa de não-ficção de norte-americanos otimistas como o compositor John Luther Adams e a incrível Ursula K. Le Guin, de quem, tomando a liberdade, traduzi à jato esses dois poeminhas que falam sobre assuntos tão latentes: o perecer à espreita e essa sensação louca que estamos vivenciando de nunca poder “desertar o deserto” criado pelo vírus. Beijos, se cuidem.
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Ancestrais
Estou tão longe dos meus antepassados agora
na minha extrema velhice que eu me sinto mais um deles
do que seus descendentes. Chegou a hora
de uma maneira física, eu não entendo. A idade se desfaz
e brinca de oroboro. Eu, a única filha
sempre fui uma das vovozinhas,
rindo de tudo, sem entender nada,
incompreensível.
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Um palíndromo que não quero escrever
O triste palindromedário,
simétrico e arbitrário,
não pode desertar o deserto, não pode vagar,
erra para frente e para trás e nunca chega em casa.
O bustrofédon mental é assustador.
Eu não quero escrever um palíndromo.
Originalmente publicado na Revista Cult.