Victor e Marielle

A Marielle foi assassinada exatamente uma semana depois do dia em que o Victor Heringer, meu amigo, tirou a própria vida. Aquele março de 2018 abriu um enorme buraco na atmosfera de nossas vidas. A partir de então foi por esse buraco que começou a descer todo o abatimento e a desesperança do universo sobre os nossos dias. Sete meses depois o Brasil elegia um criminoso para a presidência da república. Sonhei com Victor muitas vezes nesse ano ruim. Quando suspirava, falava o nome dele em voz alta, só para os meus ouvidos. Olhava para o céu e lá estava o buraco enorme, chovendo uma chuva fina feita de fuligem invisível e infinita. Hoje, apesar do temporal potencialmente perigoso que cai sobre o Rio de Janeiro, acordamos com a notícia da prisão dos mandantes do assassinato de Marielle. A chuva é de verdade; é água que lava a cidade. Parte dessa tristeza, há seis anos incrustada na paisagem, está neste momento sendo escoada em direção a Baía de Guanabara. Está descendo pelas tubulações e sendo diluída no Oceano Atlântico, acostumado a digerir o desconsolo de tão violenta cidade há centenas de anos. Esse alívio no dilúvio engana um pouco. Faz parecer que parte do mistério da morte do Victor também foi solucionado. Faz parecer que Anielle, Freixo, Mônica também falam de Victor, com os olhos inchados de lágrimas, nos vídeos que estamos compartilhando.
Ao longo desses anos foram diferentes sentimentos experimentados com o Victor ausente. Além da saudade, senti também raiva dele. Senti ciúmes e até inveja. Vez por outra ria quando lia alguma coisa dele e percebia uma ironia que estava escondida numa linha, depois de todo esse tempo. Era ele ali de novo, danado. A vida foi seguindo. Vez em quando ficava assim assim. Nos últimos meses, por circunstâncias psíquicas, esse caldo, que já estava cheio em 2018, transbordou de vez. Além do amor, da compreensão e da psicanálise, o escitalopram e a nortriptilina me ajudaram, com a devida diligência, a insurgir. Um belo dia, resolvi ler todos os livros sobre depressão e sucídio que estavam ao meu alcance. Por conta deles, fiquei obcecado pela literatura sobre o neoliberalismo, esse carcinoma que afeta nossos desejos, a bilionária indústria da guerra e o algoritmo das redes a um só golpe. É preciso estudar a dor, mapear seu genoma e descobrir seu antídoto. Foi assim que Paul B. Preciado e Mark Fisher entraram na minha casa, cada um a seu modo, lidando com suas respectivas condições disfóricas. Não estamos sós, nós vítimas do realismo capitalista que nos priva da possibilidade imanente da liberdade, como diria Marcuse. Nos priva até da própria palavra “liberdade”, cooptada pelas bocas podres de todos os políticos, policiais, milicianos e demais criminosos diretamente coniventes e responsáveis pela morte da Marielle. Como explica Mark, “A liberdade neoliberal, evidentemente, não é uma liberdade do trabalho, mas uma liberdade através do trabalho”, ao que Paul endossa: “O explorado não deseja a liberação, mas, ao contrário, quer alcançar o reconhecimento social através do consumo e da identificação normativa.” Mas não é para panfletar que esse texto surgiu hoje, de repente. Eu queria falar sobre esperança. Durante todo esse tempo, eles tentaram converter nossa confiança em desânimo, tentaram apagar nossa consciência, metafórica e literalmente. Perder Victor e Marielle é incontornável. Eles eram e são maiores do que aquela estátua no topo do Corcovado. Mas, mesmo assim, a vida segue vasta, quente e perigosa. E as possibilidades de sobrevivência, do amor e da comunhão no planeta dependem cada vez mais da sagacidade da nossa micropolítica. Hoje deu certo. Amanhã é com a gente de novo.